26.5.03

Valente sobre Cannes (1)
Afinal, as Palmas
Logo depois de ver Elephant, eu havia escrito aqui que Cannes havia visto o primeiro filme importante do ano, o primeiro para o qual precisaríamos voltar os olhos depois, repensar e discutir muito ainda. Assim sendo, esta idiossincrasia do júri, inesperada ainda que não de todo improvável, deve ser elogiada (o filme foi recebido, por exemplo, com frieza na sessão para os críticos). O mesmo deve ser dito da premiação do filme turco Uzak, que se sabia um grande favorito aos prêmios que ganhou desde o dia de sua exibição, logo no início do Festival. E mesmo o filme de Denys Arcand era um enorme favorito para o prêmio de roteiro e os de interpretação. No entanto, onde o júri certamente errou foi em concentrar o prêmio de direção e a Palma em um só filme. Não que Van Sant talvez não os mereça, mas é porque há um significado mais forte nessa concentração, por um simples motivo: ela vai inclusive contra as regras do Festival, que depois da vitória múltipla de Barton Fink em 1991 decidiu que entre a Palma, o Grande Prêmio, o Prêmio do Júri e o de Direção não poderia haver coincidência. Portanto, como consta na cobertura dos jornais franceses aos prêmios, Patrice Chereau precisou pedir a autorização de Gilles Jacob (o "dono" do Festival) antes de dar este prêmio duplo. E, aí sim, o equívoco: porque ao precisar quebrar uma regra para dar seus prêmios coincidentes, Chereau (possivelmente querendo mostrar o quanto o júri apreciou o filme de Van Sant) faz crer que não havia mais nenhum filme merecedor de prêmios em Cannes, o que chega a ser um tapa na cara de qualquer espectador razoavelmente inteligente. Como eu vinha adiantando, discutir cabeça de júri é uma inutilidade. Mas o que não se pode negar é que, além dos três filmes principalmente premiados, houve outros dois filmes no Festival que monopolizaram a atenção de todos: o de Von Trier e o de Eastwood. Esta premiação, ao omiti-los, torna a lista das Palmas um retrato infiel do que foi o Festival. Provavelmente a polêmica e direta posição política do filme do dinamarquês (assim como sua postura nem um pouco conciliadora) ofendeu a membros do júri (como se cogitava), mas o pior é imaginar que o filme de Eastwood tenha sido visto como "apenas um eficiente filme americano clássico". Aos dois filmes, é fato, está assegurado um futuro de importantes conquistas, se não de prêmios, certamente de notoriedade, e neste ponto o júri fez bem ao pegar dois filmes como os de Van Sant e do turco Ceylan e trazê-los à frente dos olhos do mundo (no Brasil, por exemplo, os filmes de VonTrier e Eastwood já têm lançamento garantido, assim como o de Arcand, mas nenhum dos outros premiados tem). Mas deveria haver espaço para lembrar destes dois filmes que, no frigir dos ovos, comporão com Elephant o trio mais importante do ano, pela reflexão que os três fazem em conjunto de uma América que é o centro de atenção do mundo hoje. Da mesma forma que o japonês Shara faria um complemento genial ao turco Uzak no retrato das pequenas (e por isso mesmo enormes) questões humanas. Mas, pelo menos, as idiossincracias do júri não acharam espaço para Sokurov e Greenaway, e isto é sempre uma boa notícia. Optou-se por um cinema mais vivo do que morto.
(Eduardo Valente)