24.5.03

Valente em Cannes (23)
A saída no meio do Blier me leva a um outro tema interessante, que são os filmes que eu não vi. Afinal, como baseei esta cobertura do dia a dia mais nos filmes que eu vi do que numa jornalística listagem de títulos em exibição, acho que vale falar dos filmes que passaram aqui e tiveram alguma repercussão, mas eu não posso atestá-la pessoalmente. Na competição, além do Blier eu perdi o da Samira Makhmalbaf (no qual dormi solenemente, mas, como já disse, pelo meu cansaço de recém-chegado e não pelo filme) e o de Pupi Avati (esse eu dormi mais ou menos pelo cansaço e mais ou menos por decisão pessoal de recuperar o cansaço num filme que não estava me interessando). Na seleção oficial fora de competição eu me retirei do realmente péssimo Qui a tué Bambi, e fora isso perdi pelo menos três filmes que foram muito bem falados: a animação francesa Les Triplettes de Belleville (já comprado para o Brasil), o documentário do Wim Wenders sobre blues (primeiro de uma série de 7 filmes de vários diretores - um deles, Scorsese), chamado The Soul of a Man, e o documentário do Erroll Morris sobre o ex-secretário de Defesa americano nos anos 60 Robert McNamara, chamado The Fog of War. No Un Certain Regard eu não vi dois filmes chineses que receberam "mixed reviews", mas parecem propostas interessantes, All Tomorrow's Parties de Yu Lik Wai e Drifters, de Wang Xiaoshuai (que está em cartaz em SP com Bicicletas de Pequim). Além disso falou-se bem do marroquino Mille Mois e do australiano Japanese Story (ambos concorrem ao Camera D'Or, então vale estar atento).
Na Quinzena dos Realizadores, me deixou especialmente chateado não ter visto Gozu, de Takashi Miike, que causou grande impressão em quem o viu. Além deste, um dos filmes mais falados no Festival foi Osama, o primeiro filme feito no Afeganistão pós-2001 (não é documentário sobre "o homem", ok). O filme do João Botelho (A Mulher Que Queria Ser Presidente dos EUA) foi muito criticado e não vi ninguém falando bem dele. E, finalmente, queria ter visto o mezzo-documentário italiano L'Isola, o documentário americano Bright Leaves (sobre a indústria do tabaco) e o iraniano Deep Breath. Como a Quinzena era o lugar do último filme do dia, deve-se citar ainda quatro clássicas dormidas que eu dei, das quais duas foram absolutamente conscientes (do tipo "não estou gostando do que vejo") e duas não (do tipo "fica aberto olho, funciona cérebro, vamos lá... ZZZZ"). Os que perdi sem querer foram o romeno Niki et Flo, do experiente Lucian Pintillie, uma mistura de comédia rasgada com estudo de personagens naquele estilo bem árido e irônico do Leste Europeu; e o francês Pas de Repos Pour les Braves, de um cineasta estreante (Alain Guiraudie), que era uma comédia na linha surrealista que em grande parte não estava me interessando muito, mas confesso a eventual boa piada e uso da linguagem. E os que eu me coloquei mesmo para dormir foram o português Quaresma, de José Álvaro Morais, que primava pela narrativa confusa e truncada sem muito motivo que as pedisse; e o francês La Chose Publique, de Mathieu Amalric, que era simplesmente francês demais para mim (ou seja, uma falação interminável num tom entre a comédia e a observação política excessivamente referencial às questões da Gália que não entendemos de todo, e bastante óbvio na parte das relações pessoais).
E, finalmente, há a Semana da Crítica, que acontece num cinema mais afastado, e onde nem consegui chegar a ir nenhuma vez, embora tenha sempre filmes interessantes. Lá eu ouvi ótimas coisas em especial do dinamarquês Reconstruction, do franco-georgiano Depuis qu'Otar est Parti (que ganhou o prêmio principal da seção) e do francês Elle et des Notres. Espero que assim vocês tenham um olhar mais global do Festival, ultrapassando os limites do meu organismo e seu sono eventual, e do meu calendário e possibilidade de encaixar filmes ou privilegiar um ou outro.
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (22)
Les côtelettes, de Bertrand Blier - Eu puxo um parágrafo específico sobre o filme, mas na verdade vou falar da minha experiência pessoal de ontem e não do filme, por um motivo simples: só aguentei 20 minutos. Trata-se, basicamente, de uma comédia que não tem graça nenhuma. E isso em pleno último dia do Festival representa uma impossibilidade de cognição para o pobre crítico, esgotado de filmes (tanto que ontem me dei por feliz por ter visto o Eastwood de manhã e, tirando essa saída no início do Blier, não vi mais nada o dia todo). Os amigos que ficaram atestaram porém que o filme recebeu a mais longa e mais "coletiva" vaia das sessões todas (digo coletiva porque muitas vezes um filme tem três ou quatro vaiando, outros apoiando, etc). No entanto, não posso emitir julgamento de fato sobre o filme (e prometo, aliás, que ele passando no Brasil eu vou lá para ver inteiro) porque, como já disse alguém certa vez, se você sai de um jogo de futebol aos 20 minutos não pode escrever uma análise dele porque nem sabe quanto foi o placar final. Então, não se trata aqui de uma crítica negativa do filme de Blier e sim de constatar que a mim foi completamente desinteressante me dedicar a ele ontem, e que a resposta da sala de cinema foi a descrita.
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (21)
Eu tenho prometido falar mais de Dogville, mas a verdade é que pra falar do filme só escrevendo uma crítica bem maior, o que, além de não dar tempo de fazer aqui, eu realmente questiono se tem utilidade, visto que o tipo de crítica com a qual gostamos de trabalhar aqui na Contracampo é sempre para complemento a se ver o filme. Tratar em detalhes e discussões profundas de filmes que ninguém viu ainda... acho inclusive desestimulante ao leitor. Por isso, acho que vou ficar num comentário bem rápido: Dogville consegue o raro feito de misturar a experimentação de linguagem (onde o trabalho de encenação de Von Trier e de fotografia e conceito de som são impressionantes) com um discurso forte, articulado e, mais do que tudo, radical. É um filme sobre a violência que está guardada no coração da América, mas impressiona a forma como Von Trier consegue fazer isso sendo direto (no discurso, no final absolutamente chocante) e sutil ao mesmo tempo (no local escolhido para encenar a história, nos pequenos detalhes de cena, nos sotaques e personagens, nas atuações em suma). Mais do que isso, só mesmo com umas três páginas, e acho que prefiro fazer isso assim que o filme puder ser visto no Brasil em algum momento.
(Eduardo Valente)