23.5.03

Valente em Cannes (16)
Mais filmes
- Robinson's Crusoe, de Lin Cheng-Sheng - Segundo representante da China (na verdade, Taipei) no Un Certain Regard. É um filme bastante mais comportado do que o representante da Competição, mas talvez por isso mesmo bem menos interessante. Segue a vida no dia a dia de um corretor de imóveis que sonha em largar tudo e comprar uma ilha no Caribe. O interessante no filme é uma grande melancolia com a vida moderna e a busca incessante do dinheiro, mas ao mesmo tempo retrata uma certa acomodação dentro deste sistema. Só que o ritmo é bastante modorrento, e Cheng-sheng não chega a dizer nada de muito novo ou de forma muito especial.
- Les Invasions Barbaires, de Denys Arcand - O filme do canadense Arcand é uma continuação de O Declínio do Império Americano e encontra os personagens em plena meia-idade, lidando com o câncer terminal de um deles. Na verdade, assume claramente o papel de um grande balanço de geração que tem como melhores qualidades muito humor e ironia (que sobra para os serviços públicos canadenses ou para os EUA), e bastante qualidade no jogo elenco-diálogos, que tornam o filme altamente palatável ao mesmo tempo que reflexivo. Fez muito sucesso com a crítica (na maior parte contemporânea dos personagens, se identificando muito com esse balanço), e é disparado o filme mais indicado pra virar sucesso nos Espaços Unibanco da vida. No entanto, se Arcand filma muito bem, o que não se pode deixar de notar é o saudosismo inerente a este tipo de trabalho (onde o melhor do mundo ficou no passado), e acima de tudo, uma certa auto-indulgência superior com esta intelectualidade "proto-burguesa" como o sal da terra, ainda que numa geração aqui considerada quase-perdida. No que tem de mais leve e menos reflexivo é um filme agradabilíssimo, mas suas reflexões e conclusões são muito questionáveis, especialmente por quem ainda acredite que há mais a ser feito por este mundo.
- Les Lionceaux, de Claire Doyon - Exemplar francês da Quinzena dos Realizadores, trata-se de um filme absolutamente lúdico, no registro da fábula anti-naturalista, sobre a briga de duas irmãs pelo amor de um homem. Funcionando quase sempre numa mistura de lirismo e humor, o filme não chega a ser bem sucedido, mas consegue ser agradável aos olhos e ouvidos, eventualmente. Seu latente "juvenilismo" é ao mesmo tempo seu maior defeito e sua fonte de frescor.
- Tiresia, de Bertrando Bonello - Os que gostaram ou não do filme anterior de Bonello (O Pornógrafo) não podem deixar de reconhecer que há no trabalho do diretor uma profunda veia racionalista, onde a compreensão do mundo e a realização do cinema se dá pelo meio do pensamento articulado, de observações bastante reflexivas e extremamente "apalavradas". Seu novo trabalho pode ser visto tanto como um aprofundamento disso (mais uma vez há uma certa solenidade na encenação, além do tratamento de grandas questões, neste caso adaptadas diretamente da mitologia), como um passo adiante, no caso do trabalho com os elementos audiovisuais. Ao tentar dar forma atual ao mito de Tirésias, ele usa alguns artifícios extremamente interessantes como uma divisão bem clara em duas partes (onde a personagem principal é interpretada por duas pessoas diferentes em cada uma delas, uma mulher e um homem) e uma encenação bastante antinaturalista, na primeira delas, mas de enorme beleza e poesia formal. É um filme de diálogo complexo, mas ao mesmo tempo de até inesperada sedução aos sentidos do espectador que se dispuser a ser seduzido. E ainda tem o interesse adicional aos brasileiros que Tiresia surge como uma transexual brasileira, com direito a muitos diálogos em português.
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (15)
Um esclarecimento que raramente é dado na imprensa brasileira precisa ser dado aqui: há em Cannes geralmente três tipos diferentes de sessão para os filmes da Competição. A sessão fechada para a imprensa, as sessões para público sem o diretor e a sessão oficial para o público com o diretor. Este esclarecimento é importante porque explica algumas dualidades como se ter dito num dia em um jornal que "Carandiru foi arrasado pelo público" (no que era de fato uma sessão de críticos), e no dia seguinte que foi aplaudido por 5 minutos (esta na sessão oficial). As melhores sessões para se ir (mas nem sempre se pode escolher, porque tem que compor o horário, afinal) são as de público, sem o diretor. Porque nelas nem há a puxada de saco ao artista, nem o climinha "nós contra o filme" das sessões de crítica.
(Eduardo Valente)