24.5.03

Valente em Cannes (19)
Paralelas e Transversais - versão Cannes
Três filmes em três mostras diferentes lidaram no mesmo dia com a morte de um ente querido e a dificuldade de se lidar com ela - e diferentes presenças "físicas" destes mortos.
- The Brown Bunny, de Vincent Gallo - Junto a Dogville, foi a grande sensação da Competição deste ano - ainda que pelo lado oposto. Na sessão da crítica foi recebido com igual número de gargalhadas e saídas da sala, e considerado quase unanimemente como a pior seleção do festival para a Mostra Competitiva em muitos anos (a tal ponto que ontem seu diretor deu uma entrevista se desculpando pelo filme, vejam só - ou melhor, não pelo filme, mas por não ter conseguido fazer com que ele se comunicasse com os críticos). Porque "quase unanimemente"? Porque há quem goste dele. Eu incluído aí. Gallo faz um filme que responde à pergunta corrente do mundo do cinema americano pós-Miramax "afinal, o que é um filme independente?". Este é, feito com quase nenhum dinheiro, equipe abaixo do mínimo, mas mais do que isso, um espírito de confrontação (e confrontação foi o que ele conseguiu, Gallo não tem que se desculpar pela mesquinharia crítica) com as normas do grande cinema. Nele, um homem dirige seu furgão do Leste ao Oeste dos EUA (indo de uma corrida de motocicleta para outra - ele é corredor), e sofre de uma melancolia não explicada. Alguns poucos encontros com algumas mulheres, cenas em hoteís e cafés, mas acima de tudo, muita, muita estrada e muito silêncio. Disso é composta boa metade do filme de Gallo, e daí o incômodo. Só que sua filmagem é não só bela como profundamente crivada de significado (toda a tradição do road movie americano não precisa ser trazida à tona de novo), e há uma hipnose fascinante neste processo de perda de si mesmo que faz lembrar em momentos Antonioni e, em outros momentos, o filme de Gus Van Sant do ano passado, Gerry. Só que, ao contrário destes, Gallo no final faz uma explicação existencial do que se passava até ali, que embora soe diminuidora num primeiro momento, ganha força e pertinência e empresta um tal grau de melancolia e dureza ao filme que a poesia dele se multiplica. Isso tudo dito, está longe de ser um filme perfeito, mas é de suas imperfeições que sai o melhor dele, e é dos mais consistentemente intrigantes em muito tempo. Como isso pode ser desprezado como lixo, me escapa.
- Kiss of Life, de Emily Young - Filme de estréia da curtametragista inglesa (que havia ganho a Cinéfondation), trata da morte de uma mãe de família. Seu marido estava fora do país, e enquanto tenta voltar para casa desconhece este falecimento (mas passa por outras provações porque está saindo do Kosovo em plena guerra). Vemos então os filhos do casal, o pai da mulher e o que pode ser um próprio fantasma dela lidando com a nova situação enquanto o marido luta para voltar. A estrutura destas montagens paralelas torna-se um pouco repetitiva e há uma frieza pouco desejada no filme, mas, quando acerta, a diretora Young cria momentos de forte poesia audiovisual que demonstram um olho e ouvidos promissores para o cinema, mas que podem ganhar estrutura narrativa mais resolvida.
- Des Plumes dans la Tête, de Thomas de Thier - Outro filme de estréia, desta vez belga, na Quinzena dos Realizadores. Lida com assunto muito semelhante ao de Young, só que aqui o parente perdido é um filho pequeno e a mãe tem que lidar com isso. Como Young, Thier consegue momentos visuais impressionantes (em especial o plano inicial e o final, preciosos), mas, ainda mais do que ela, lhe falta consistência narrativa. Mais do que isso, sobra uma certa vontade de colocar a direção do filme acima do drama dos personagens, onde sempre se nota mais a realização do que a emoção. Certamente é reflexo de um excesso de "estilo" que se parece querer imprimir cada vez aos filmes que brigam por espaços em grandes festivais.
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (18)
Hoje fui à coletiva de Sokurov, só para dar uma chance de ver que talvez eu é que tivesse uma predisposição contra o filme (embora não tivesse...), etc. Mas o cara falando (como mesmo os fãs dele, como o Cléber Eduardo, podem atestar) é muito pior do que filmando. Entre as preciosidades: quando perguntado sobre o latente potencial homoerótico da sua filmagem da relação entre pai e filho, ele disse que este olhar "sujo" estava nos olhos de quem via o filme. Disse que a sujeira tomava a nossa sociedade moderna, e que ele ansiava por uma volta aos tempos de uma real ternura entre os seres humanos e de códigos morais mais firmes. Isso em meio a uma diatribe onde ele afirmou que, por mais criticável que fosse o socialismo, esta qualidade ele tinha: não havia decadência moral - ou seja, o homem é anti-socialista (sempre foi), mas gosta justamente do aspecto ditatorial do mesmo. Não feliz com isso, afirmou a crença numa arte bela, como a literatura do século XIX, e acima de tudo numa arte acima da sujeira do mundo atual. Ah, e isso tudo dito com um discurso caudaloso que lembra de fato os melhores oradores entre os nossos ditadores favoritos (aliás, ele anda cada vez mais parecido fisicamente com o Hitler, diga-se), e que o fazia responder a perguntas direcionadas aos atores (e terminando dizendo "estou certo que eles concordam comigo, passo a palavra a eles") e ainda agradecer o subvencionamento estatal do Ministro da Cultura russo, que estava estranhamente sentado na mesa da coletiva. Foi um espetáculo dos mais estranhos, e que me deu a certeza: o conservadorismo francamente fascista dessa "bela arte" Sokuroviana (que até podia e foi interessante, mas se tornou simplesmente auto-indulgente ao extremo) deve ser deplorado. E mais: sugestão que surgiu aqui nos corredores - que ele completasse sua tetralogia sobre os ditadores fazendo um quinto filme com o making of da filmagem dos outros quatro.
(Eduardo Valente)