20.5.03

Valente em Cannes (9)
Outros filmes
- Le Monde Vivant, de Eugene Green - Uma deliciosa "brincadeira séria" de linguagem exibida na Quinzena dos Realizadores. Trata-se da encenação de uma lenda medieval com cavaleiros com leões enfrentando ogres, só que feita sem nenhuma reconstituição ou efeitos. Ou seja: os cavaleiros são apenas jovens de calças jeans e camisas de manga, o leão é um labrador, etc. Parece uma sátira, mas aí está o segredo: o filme leva muito a sério a sua história, e a conta com uma encenação que lembra a de um Straub. Só que inclui nos diálogos muita ironia, sempre. Com isso, há uma mistura inesperada de real magia, e de muita inteligência no trabalho que ri de si mesmo, sem no entanto fazer chacota da possibilidade de contar uma história com o mínimo de recursos. Um trabalho dos mais fascinantes.
- Bright Future (Akurai Mirai), de Kyoshi Kurosawa - Filme de cativante potencial poético no trato de um tema bastante comum: a juventude sem projetos e o conflito de gerações entre ela e seus pais. Kurosawa cria algumas imagens de força ímpar, usando medusas (sim, os animais marinhos) como metáfora do desejo de mudar o mundo (um pouco na linha do uso da enguia por Imamura). Em competição, é difícil o filme sair com algum prêmio, pela sua forma bem pouco convencional e muito menos ainda condescendente com o espectador, mas mostra a força de um cinema japonês jovem do qual se exibirá mais um exemplar em competição até o fim da semana.
- Le Temps de Loups, de Michael Haneke - Exibido na Seleção Oficial, mas fora de competição porque tem como ator o presidente do júri deste ano, Patrice Chereau. O filme de Haneke foi o mais vaiado até agora na sessão de imprensa (embora tenha havido palmas), onde só se tinha ouvido eventuais apupos individuais até agora (mas os amigos com mais experiência em Cannes asseguram que todo ano acontece isso com Haneke). Claro que Haneke continua trabalhando com sua "estética do refém", onde o espectador é quase um joguete numa relação sadomasoquista com o filme, mas não se pode negar que, até pelo grande número de personagens em cena, ele está bem mais "matizado". Mas, mais do que tudo, o filme sofre na segunda metade de um problema grave de não saber exatamente para onde ir, e começa a dar voltas em torno do rabo. A idéia inicial de um mundo pós-catástrofe, onde nunca sabemos qual catástrofe exatamente, nem vemos nenhum efeito direto dela (pois acompanhamos apenas pessoas se refugiando no interior do país), é boa e muito bem trabalhada visualmente. Mas, quando se forma uma tal comunidade com relações internas que Haneke claramente quer usar como metáfora da sociedade contemporânea, ele cai assustadoramente de efeito. Não era caso pra tantas vaias (afinal, pode-se dizer inclusive que o final do filme tem ironia, mas ao mesmo tempo é quase otimista e "humano", o que vindo de Haneke é novidade), mas talvez por isso mesmo seja o trabalho menos interessante de Haneke em algum tempo.
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (8)
O Affair Dogville
Para se entender o que representou Dogville em Cannes, basta usar como exemplo o caos que se instaurou na entrada da sala de conferência de imprensa (onde, geralmente se entra com tranquilidade). Realizada logo após a exibição do filme, o que se viu foi quase uma praça de guerra com mais de 500 jornalistas brigando para entrar num local onde só cabem 150. Isso simplesmente porque se sabia que, o que quer que Lars Von Trier e Nicole Kidman fossem dizer, era o momento mais importante do Festival. E a entrevista foi ótima, com Von Trier mostrando-se mais uma vez um gênio do marketing, levando os jornalistas americanos (que eram maioria e estavam majoritariamente irritadíssimos) na flauta, com respostas do tipo "Eu adoraria ser americano", "Eu queria que houvesse uma campanha Free America, como houve agora a Free Iraq", "Eu nunca fui aos EUA, até adoraria ir, mas não acho que seja um bom momento para isso", "O filme não é um retrato da América, e sim de mim como um espelho da América", "se a América acha que pode falar sobre todos, porque nós não poderíamos falar da América?", "Eu nunca estive lá, mas não creio que os realizadores de Casablanca tenham estado lá também", etc. Hoje, quando saíram as primeiras reações na mídia, se viu o esperado: uma crítica irada da Variety e o filme sendo considerado o melhor até agora pelo quadro de cotações da Screen International (com críticos do mundo todo - mininota de rodapé: dos dez filmes exibidos até agora, Carandiru está em último nesse mesmo quadro). Com isso reforça-se a impressão inicial: o filme é tão contundente que pode perder a Palma por ter incomodado demais alguém, em especial a porção americana do júri, que pode ser obrigado a contemporizar. Por que tanta polêmica, afinal? Falamos disso em breve...
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (7)
É uma pena, mas no mesmo dia em que o Festival de Cannes começou de verdade, ele também terminou. Explico: Dogville, de Lars Von Trier, é muito mais do que se esperava dele. É um filme para se discutir por muitos anos, e que entre outras coisas torna imediatamente desatualizada a própria pauta da Contracampo sobre as imagens da América (especialmente por estrangeiros). É filme maior, do qual falaremos bem mais amanhã. Só que com ele veio a sensação de que tudo daqui por diante será anti-clímax. Von Trier só não leva a Palma de Ouro em 3 situações: 1) um dos próximos filmes seja a vinda do messias em forma de cinema. 2) o júri prefira não premiar o mesmo cineasta 3 Cannes depois. 3) a força e a contundência do filme encontre alguma resistência veemente em algum membro do júri (trata-se do tipo de filme que pode causar isso). Mas no que importa, que é menos os prêmios e mais os filmes, a certeza é: Cannes 2003 já valeu a pena. Ah, e minha profecia ao ver a programação divulgada se confirmou: o que antes era CarandiRÚ, com sotaque francês, virou Carandi-WHO?, em inglês mesmo, depois que a presença no mesmo dia de Von Trier apagou completamente Babenco dos registros oficiais.
(Eduardo Valente)