22.8.07

Pirataria

Tem sido veiculada em alguns dvds uma campanha publicitária anti-pirataria. A história é simples. Um pai chega com um presente para o filho. Um famigerado dvd pirata de "um filme inédito no cinema", como diz. O filho, contente, recebe o presente e mostra ao pai a prova pirata que havia feito no colégio. O pai não entende muito bem, até o filhote explicar: "prova pirata, pai. copiei tudo de um amigo meu". E então, como de se esperar, o paizão fica com uma cara de bobo, sem saber como agir, sob o olhar repressor da mãe, que está ao fundo só observando a cena. Nesse momento, e só então, o pai é invadido pelo sentimento de culpa, tomando ciência do ato incorreto. A imagem se transfigura, ganha um tom uniforme, quase preto e branco. Atitude anti-ética, deve ser combatida com todo vigor.
Antes de combater a atitude, no entanto, talvez devêssemos combater a propaganda. Não se trata, aqui, necessariamente, de defender a pirataria, mas levarmos em conta, em primeiro lugar, o mercado distribuidor e exibidor de filmes, tanto em home-video quanto, e sobretudo, no cinema. Os ingressos são caríssimos, as salas normalmente estão concentradas em shoppings, sob a outorga dos multiplex e seus preços comumente exorbitantes. O cinema, popular um dia, hoje é bem menos freqüentado do que seu potencial permite. Não se trata de falta de vontade ou mesmo de interesse do espectador, falando em números brutos. Entretanto, muitas vezes o "programa cinema" torna-se inviável. Para uma família composta de um casal e dois filhos, o desembolso de um filme em cartaz é por volta de 42 reais (sendo 14 reais a entrada inteira, e 7 reais a meia-entrada para estudante). E ainda existem as despesas paralelas, como estacionamentos, ônibus e mesmo as guloseimas e seus preços supervalorizados.
Para a mesma família assistir ao mesmo lançamento em sua casa, com a imagem ruim, a janela de exibição errada, os contrastes alterados, o som de péssima qualidade e a diversão garantida, ela gasta apenas 10 reais (levando em conta um grande lançamento como Piratas do Caribe ou Homem-Aranha 3).
Antes de prosseguirmos, melhor voltar à recente trajetória do mercado fonográfico. Lembram-se do Napster? Combatido, seus idealizadores foram perseguidos e acusados de falta de ética. Hoje, no entanto, vemos a proliferação de Emules, Soulseeks, Kazaas e uma série de outras fontes onde se podem baixar músicas de graça pela internet. Atividade ainda não regulamentada, mas absolutamente fora do controle das gravadoras ou mesmo dos artistas.
A comparação com o mercado fonográfico torna-se inevitável. Guardadas todas as proporções (que de fato não são pequenas) o mercado exibidor de cinema precisa se atualizar. Certamente não serão as campanhas de cunho educativo e moralista que reverterão a situação calamitosa prestes a se instalar. A pirataria tende a crescer, não somente com os camelôs pelas ruas, mas com a internet, sobretudo.
Mas as atitudes recentes são as de revista nas cabines de imprensa, com a entrada proibida de celulares ou aparelhos eletrônicos, a fim de evitar a produção futura de dvds piratas dos filmes exibidos. As grandes distribuidoras, ao invés de repensar o sistema operacional, apelam para o sistema repressor e de controle (sempre corrompíveis, evidentemente).
Voltando à propaganda supracitada, o que mais chama atenção, no entanto, é a forma como a campanha é desenvolvida. O tom provocador faz com que o espectador pirata se sinta absolutamente culpado. Transforma o ato em condenável, fazendo da própria comparação com a prova do filho algo cabível, quando na verdade não passa da mais absurda estratégia de repressão moral. A condenação da ética imposta pelos idealizadores de tal campanha beira a atitude mais nociva, digna de comparação, esta sim bastante cabível, com sistemas totalitários, que apelavam ao convencimento da população a partir de golpes baixos, colocando o indivíduo contra si próprio. Ah, claro, o tom engraçadinho está presente. Assim, se em um primeiro momento você ri, no outro se esconde. E dessa forma vamos levando: faz-se filmes, eles são copiados, as cópias são combatidas, culpa-se o espectador final e faz-se filmes...
O espectador ávido pelo cinema. Realizadores batalhando para produzirem. E um sistema operacional absolutamente desconectado dessas vontades. Mas mudar é trabalhoso, e a gente vai levando, vai levando, vai levando...
Raphael Mesquita