12.8.07

Como Debord já dizia...

Em "Cette mauvaise réputation...", livro composto de réplicas a jornalistas e intelectuais que haviam escrito sobre ele, Guy Debord comenta que "uma das múltiplas utilidades do espetáculo, justamente, é de dirigir o grande público para debates bem conhecidos e até prefabricados ad hoc". E qual não é o espanto (porque surpresa em si não há, infelizmente até) ao conferir, tardiamente, confessamos, os debates surgidos nos jornais brasileiros em decorrência da morte de Ingmar Bergman e Michelangelo Antonioni (a se notar, naturalmente, que nenhum desses jornais deu a devida atenção à morte de Edward Yang, e nenhum deles deu qualquer atenção à morte de Isidore Isou - poeta, pintor, teórico e cineasta -, sequer noticiada). O tom dos artigos e reportagens, de uma solene nostalgia com o "cinema sério", "autoral" dos anos 60, faz crer que esses veículos buscam incansavelmente, dos anos 60 até os dias de hoje, por realizadores de "cinema sério", "autoral", e que é por evidência comprovada que nada nos dias de hoje se compara a esse cinema de antão, e que, conseqüentemente, é legítima a fonte de indagação: com a morte desses artistas, ainda existe cinema de autor?
A resposta, no entanto, não deve ser dirigida ao panorama cinematográfico, mas ao próprio trabalho diário dessas pessoas que, iletradas, míopes e/ou hipócritas, pouco se importam com os aspectos artísticos da arte cinematográfica quando se dignam a falar de filmes "eletrizantes", quando abrem as pernas para o espectador mais raso, quando falam em "cinema oriental" com aparente propriedade quando esse termo tem significação nula para qualquer um que acompanha com alguma atenção o cinema asiático em toda sua diversidade, quando JAMAIS usam do espaço que têm em seus respectivos veículos para falar de diretores como Hou Hsiao-hsien, Chantal Akerman, Hong Sang-Soo, Pedro Costa, João César Monteiro, Apichatpong Weerasethakul, Wang Bing, Philippe Garrel, Claire Denis, ou quando jamais utilizam o espaço que têm para falar em termos autorais de gente como M. Night Shyamalan, Michael Mann ou Clint Eastwood.
O fato de que a morte de dois cineastas que marcaram os anos 60 só conseguiu originar um debate sobre a morte do cinema de autor só serve para corroborar algo que está aí o tempo inteiro, mas que fica mais evidente quando vemos uma enxurrada de gente fazendo as perguntas erradas e erigindo falsas questões no lugar das apropriadas: não é que o cinema não se reconstruiu como "cinema de autor" a partir dos anos 60, o problema é que as pessoas autorizadas a construir cânones e panteões são meros funcionários de um senso comum vigente, funcionários de um modo de vida que preza o "entretenimento de qualidade" (função ideológica de uma certa crítica há tempos imemoriais) e que, por deficiência de posição e de visão, foram incapazes de ver um panorama cinematográfico se reconfigurar e produzir novos artistas e grandes autores.
E o problema não é só brasileiro, como se pode ver nas estupidíssimas declarações dadas por Michel Ciment ao suplemento Mais da Folha de S. Paulo de 5 de agosto: fora com os radicais (Costa, Hou, Weerasethakul), fora com os desabusadamente comerciais (irmãos Farrelly, Mann), vida longa ao bom senso unanimista. Não à toa, uma palavra que rondou os últimos escritos de Guy Debord e que perpassa os escritos recentes de Jacques Rancière é consenso - assim como a idéia de que vivemos tempos consensuais em que a verdade é construída através do reforço e da insistência da mesma coisa dita e escrita em diferentes lugares, ou seja, por um imenso (e até inconsciente) aparato de marketing, ou ür-marketing, se se quiser. Nesse breve estudo de caso, eles não poderiam estar mais certos.
Mas como aqui a gente gosta de ser chato; como, torquatamente adoramos desafinar o coro dos contentes, jogamos a bola no campo do adversário dizendo que o que não se renovou não foi o cinema, foi o olhar de quem se perguntou sobre cinema dessa forma.
Ruy Gardnier