17.5.03

Valente em Cannes (4)
Mais Filmes
- Kitchen Stories, de Bent Hamer - primeiro filme visto na Quinzena dos Realizadores (onde perdi o filme de abertura, de João Botelho, porque a sala estava lotada quando consegui chegar), trata-se de uma comédia com um humor bastante norueguês (seja lá o que isso signifique). Hamer fez pelo menos um filme bem interessante que passou na Mostra Rio (Ovos), e este aqui começa muito bem, mas vai se tornando mais e mais esquemático até o final. No fim de um dia de trabalho, um convite ao cansaço.
- Les Égarés, de André Techiné - Techiné consegue voltar ao tema da Segunda Guerra e fazer um filme que soa novo. O início é especialmente belo, com uma cena de bombardeio de arrepiar (pela simplicidade) e com a passagem do drama geral da população francesa para o microcosmo de uma família. O filme é um estudo de personagens e relações extremamente delicado, e além de tudo ainda tem Emmanuelle Beárt, o que não é pouca coisa.
- Vai e Vem, de João César Monteiro - o filme de despedida do cineasta português, falecido no início do ano, é tudo que se poderia esperar de um testamento de um artista tão radical e vital quanto Monteiro era (e é, pelos seus filmes). Para se falar dele de fato, há que se escrever muito mais do que isso, o que prometo fazer em breve. Tomara que seja levado aos festivais do Brasil.
- Uzak (Lontain), de Nuri Bilge Ceylan - o filme turco da competição, de um cineasta desconhecido por quase todos, é o melhor dentre os exibidos até agora (o que não é pouco, tendo visto Techiné e Ruiz em boa forma, ainda que em filmes menores). Uma radicalíssima descrição da desilusão do homem moderno com o mundo, a partir da rotina extremamente simples e ao mesmo tempo duríssima de dois primos. Sem forçar tons, deixando que cada imagem, cada som, cada corte tenha sua força, o filme causou leve debandada na sessão de público (nada de incomum, aliás), mas os que ficaram aplaudiram longamente o cineasta. Um belíssimo exercício de rigor cinematográfico.
- American Splendor, de Shari Springer Berman e Roberto Pulcini - vencedor do júri de Sundance, passou aqui na Un Certain Regard. O filme começa muito bem com uma mescla de documentário, ficção e efeitos visuais tentando retomar a origem do filme, que é adaptação de uma tira de quadrinhos americana baseada na vida absolutamente comum de seu criador (que, para localizar, basta dizer que é amigo de Robert Crumb). Infelizmente, o filme perde muito o gás depois que seus truques de linguagem começam a se repetir, e embora Pual Giamatti tenha um desempenho excepcional como o protagonista, o filme se ressente de mais documentário e menos ficção, porque esta começa a se tornar mais e mais esquemática, e francamente diminuidora da história que se tinha em mãos.
- Young Adam, de David Mackenzie - Filme de estreante, na Un Certain Regard. Um início arrebatador, com meia hora de uma filmagem (e sons) altamente sedutores no conto do envolvimento de um homem com a mulher de seu patrão (sendo que eles trabalham e vivem numa balsa que roda pelos rios da Escócia). Infelizmente, o filme vai ficando mais e mais apaixonado pela sua linguagem (e pela trilha de David Byrne, no início bela, depois cansativa), e pelos truques de roteiro que começa a alinhavar, e acaba deixando de lado tudo que nos havia interessado no início. Pena.
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (3)
Festival Fatigue
Me lembro de que, quando eu apenas tinha vontade de vir ao Festival um dia, eu achava uma frescura e uma certa tiração de onda quando o amigo crítico recifense Kléber Mendonça Filho descrevia a tal doença-título do post. Ele dizia que era impossível acompanhar de fato os filmes, comer decentemente e dormir, e que, com isso, o crítico terminava muito mais um zumbi do que um espectador privilegiado. É impressionante constatar a total verdade da versão dele. Após três dias de Festival, qualquer pessoa com o idealismo de cobrir a sério um evento como este já está completamente esgotada. Acorda-se às 7 e meia da manhã pra se ver a primeira sessão de imprensa às 8h30 (sempre do filme mais importante da competição), e vê-se filmes correndo de uma sala para a outra (enfrentando filas sempre, e nem sempre sentando-se nos melhores lugares) até a meia-noite. Comer é quase um sonho, e quando realizado após a última sessão significa menos horas de sono precioso. E os amigos da cobertura diária ainda precisam mandar várias linhas coerentes pros seus jornais colocando em dia as notícias (na maior parte das vezes em detrimento de ver filmes importantes). Comprovo: é coisa de maluco. Os jornalistas são, disparados, os mais estressados e cansados no Festival desde o segundo dia. E, um segredo de estado - a grande maioria dorme em pelo menos um filme por dia, e escreve sobre eles muitas vezes (por obrigação, diga-se) a partir do pouco que tenha visto e do comentário dos amigos. Eu confesso: na Competição Oficial dormi no filme de Samira Makhmalbaf, este não por culpa dela (não vi o suficiente pra saber se é bom), e no de Pupi Avati (este de propósito, porque o filme é ruim demais). Ah, e comemorei hoje a primeira saída com meia hora de filme: Qui A Tué Bambi?, um suspense francês risível que passava fora de competição.
(Eduardo Valente)