8.8.06

Uma história triste III - A Cinédia (tristezas não pagam dívidas)

Tudo isso que eu escrevi nesses dois posts aí embaixo cria o contexto de uma história triste de administração de bens culturais, ocasionada pela falta de estrutura de um museu privado e pela falta de grana do país.
Mas tem mais um trecho da história que deve ser contado, significativo o bastante para que a gente possa reavaliar de forma mais crítica o papel cumprido por alguns. Este trecho da história poderia ser resumido a um encontro. Refiro-me a uma visita a Alice Gonzaga e seus estúdios da Cinédia feita por Arnaldo Carrilho, então presidente da Riofilme. Essa visita ocorreu cerca de quatro meses depois do momento de crise do MAM, quando boa parte das matrizes já havia sido transferida para o Arquivo Nacional e a equipe da prefeitura já havia percebido o tamanho do pepino.
Para fazer a crônica dessa história, peço ao leitor que me permita voltar um pouco mais, ao momento em que a crise parecia se resolver, pelo menos à primeira vista, depois de algumas reuniões públicas abertas e uma fechada (no MAM) se sucederem em busca de uma solução. A escolha definitiva foi apresentada num encontro na Escola Darcy Ribeiro, numa mesa que reunia Carrilho (representando a prefeitura, que pagaria a conta), Mary Del Priore (representando o Arquivo Nacional) e Murilo Salles, que em nome da Abraci comemorou a solução escolhida. Outras soluções haviam sido apresentadas nos encontros anteriores (que aconteceram na Associação Comercial do Rio e no próprio MAM) e foram lembradas na ocasião: as propostas de Wilson Borges - que dizia não precisar de mais do que três meses para adequar os depósitos da Labocine às necessidades de armazenamento - e de Alice Gonzaga.
Alice Gonzaga é a responsável pela Cinédia, a mais antiga empresa produtora de cinema em atividade no país. Foi fundada pelo pai dela, Adhemar Gonzaga, aquela figura mítica. Pois bem, por décadas, desde o tempo do Seu Adhemar a Cinédia mantinha cinco estúdios bastante grandes. Alguns deles eram climatizados e, segundo a avaliação de Hernani Heffner na época, já tinham condições adequadas para armazenar o acervo do MAM (já armazenavam as matrizes dos filmes da Cinédia, inclusive).
Ou seja, foi apresentada uma saída factível e imediata. Havia, no entanto, algumas questões: Dona Alice não queria vender barato os bens que tinha para garantir sua tranqüilidade financeira; a prefeitura achou mais correto prometer verbas ao Arquivo Nacional, órgão público, do que propor a compra de um imóvel em regime de urgência; além disso, a Cinédia fica em Jacarepaguá, distante do centro do Rio (o que dificultaria a circulação de cópias, além de deixar o acervo de filmes longe da maioria da população).

Na imaginação, o desfecho apresentado ao público na Darcy Ribeiro parecia bonito: ao mesmo tempo em que capacitaria o Arquivo Nacional, a prefeitura em poucos meses criaria e manteria a Cinemateca Carioca, com reserva técnica para guardar as matrizes e espaços para exibição de filmes e acesso ao acervo. Mas não foi isso o que aconteceu - as verbas não vieram, os projetos travaram e as matrizes se acumulavam na remoção. Foi nesse contexto que, quase quatro meses depois do anúncio na Darcy Ribeiro, Arnaldo Carrilho foi visitar Alice Gonzaga na Cinédia.
Ela não demorou muito para perceber as intenções dele por lá, examinando as condições dos estúdios, e avisou a ele que já era tarde demais àquela altura - ela já tinha vendido o que pretendia vender (ainda manteve a posse de dois estúdios). A construtura que comprou o terreno botou abaixo os estúdios da Cinédia. Ou seja, o lugar do Rio de Janeiro em que já poderia existir uma reserva técnica para preservar as matrizes dos filmes brasileiros foi demolido.

O aspecto que me parece definitivalmente triste ressaltado por essa história é o de que a ida de Carrilho à Cinédia indica que a prefeitura já sabia que o plano de expandir o Arquivo Nacional estava fazendo água. Isto aconteceu no final de 2002. Mesmo que se parta do pressuposto extremamente negativo de que a prefeitura e sua secretaria de cultura só se interessam pelo marketing e não se preocupam com o resultado final, continuo sem entender por que é que nenhuma alternativa foi tentada desde então. Se há conhecimento do problema, por que se espera estourar uma nova crise? Vale notar que o Ministério da Cultura não se manifestou na ocasião, em 2002 (e continua sem se manifestar). A prefeitura do Rio se manifestou, assumiu uma grande responsabilidade e... não cumpriu.
A atitude dos signatários da carta citada lá embaixo pode não resultar em nada, ou pode mesmo ser resolvida de forma parcialmente adequada caso seja criado o plano de carreira no Arquivo Nacional, mas esse não é o problema que fica evidente. O problema evidente é que não há uma cinemateca no Rio de Janeiro para guardar filmes e divulgar o acervo. A conseqüência imediata disso é que as condições de armazenamento das matrizes que estão aqui são mais limitadas e, com isso, a preservação dos filmes vai sendo comprometida dia a dia. E não há qualquer projeto sendo feito em sentido contrário.
Daniel Caetano