8.5.04

Como a militância da crítica não passa só pelo cinema, e como não se pode contar com a publicação da missiva abaixo pelo seu destinatário, o jornal O Globo, publico aqui a carta enviada ontem ao referido veículo, por ser discussão importante do estado das coisas da crítica em geral - e da ignorância que não se pode aceitar quietinho como "saber crítico".

"Caros senhores,
Quanto à crítica de Barbara Heliodora publicada no dia 29/04, sobre a peça "Qual foi o teu sonho na vida, meu bem?", não é nem o caso de se trazer à tona o conservadorismo galopante que se costuma disfarçar por trás do (inegável) estofo teatral da referida crítica. Da mesma forma, não se deve tratar muito da inadequação de julgar uma peça para fora de suas intenções (numa expressão de um chamado Teatro do Cotidiano, acusá-lo de não possuir variações notáveis ou ordenação dramatúrgica estrita é verdadeiro tiro no pé). Mas o que não se pode passar é o trecho onde se acusa que "o fato de se tratar de duas lésbicas não possui a menor significação, (...) os mesmos tipos de experiências cotidianas poderiam ser experimentados por qualquer outro par de pessoas(...)". Ora, dona Barbara, aí é demais: exige-se de uma peça sobre heterossexuais que lide com dramas "específicos da heterossexualidade"? Pelo amor de Deus! Ser lésbica é, sim, uma condição que iguala as personagens a qualquer outra pessoa, ainda bem. Que há questões a serem enfrentadas pelos homossexuais em nossa sociedade, é bem sabido - das quais uma das maiores é justamente quebrar julgamentos limitados como este emitido pela crítica, onde se imagina que a vivência homossexual, ao ser retratada, deve ter "algo de diferente". Afirmar a normalidade de uma relação homossexual não é defeito, querida crítica, é antes posição política - a não ser que também se ache que "fazer política" é só afiliar-se a partidos, candidatar-se a cargos públicos, ou fazer peças sobre figuras públicas. Pode-se até achar isso - mas é tão limitado quanto guetificar gêneros, raças e opções sexuais."
Eduardo Valente