19.2.04

Mestre dos mestres

O Le Monde anunciou hoje a morte em um acidente de carro de Jean Rouch. Aos 86 anos e mais de 120 filmes na carreira, Rouch é um dos nomes mais essenciais para a existência de tudo o que nós nos acostumamos chamar de cinema moderno. Seu cinema-verité (que buscava a "verdade do cinema e não a verdade no cinema" - conceito rouchiano que se popularizou com o gênio explosivo de Godard) foi o momento mais crucial para tudo o que hoje se pode pensar sobre os pactos de encenação no cinema e sua relação de "representação da vida" para com o espectador. De Godard a Eduardo Coutinho, todo o cinema moderno deve muito à forma como Jean Rouch (um etnólogo decepcionado com a academia e com a frieza das pesquisas campais) ultrapassou os conceitos da ilusão e do real na construção do espaço cênico/narrativo e na descoberta do outro. A "super-verdade" buscada por Rouch em Os mestres loucos (1954) ecoa até hoje no que de melhor se faz no cinema dito "documental" em qualquer parte do mundo. O diretor do clássico (obrigatório) Moi, un noir passou as últimas décadas de vida à frente da sala da Cinemateca Francesa em Paris, sendo responsável pela programação e agitação cultural que a caracterizam. É difícil não ver simbolismo na morte de Rouch durante uma viagem pelas estradas da Nigéria, país essencial em sua obra, onde o cineasta encontrou/construiu alguns de seus maiores parceiros/personagens, descobrindo no improviso e na super-interpretação do cotidiano (e de seus rituais) um dos dispositivos mais ricos e instigantes com que o estatuto da imagem cinematográfica já se deparou. Com Rouch, o cinema documentário refez o caminho de volta ao seio da ficção narrativa e levou a ela o peso de sua câmera, o lugar do recorte emergencial - redescobrindo as "verdades" da ficcionalização, fazendo da encenação das identidades e do teatro do cotidiano um evento único, efêmero e muito além dos meros dispositivos de registro ou das fórmulas de representação "delicada" da monótona indústria "ficcional" ...Com Rouch, o documentário perdeu a sua empáfia e a ficção pôde dar um adeus definitivo à sua cínica ingenuidade. Grande Jean Rouch. Essencial Jean Rouch.
Felipe Bragança