2.5.06

Dinheiro público sim, e com razão!

O pessoal gosta de repetir por aí aquela frase do Godard em História(s) do Cinema, "cultura é a regra, arte é a exceção". Pois é, é bom atentar para ela - mas não como forma de dizer que "só a arte é importante"; ao contrário, pois sem regra não há exceção.
Me desculpe o Paulo Santos Lima, gente finíssima, mas hoje ele publicou uma opinião na Folha que é preciso contestar. É, na verdade, o mesmo pensamento que o nosso leitor Antonio deixou aqui em alguns comentários numa nota abaixo - o de que é inaceitável botar dinheiro público (através de leis de incentivo) em alguns filmes recentes, devido à sua muito discutível "má qualidade".

Em uma palavra, esse argumento é absurdo.

Antes de mais nada: é muito necessário discutir o uso de recursos públicos em produção de cinema; é muito natural, do mesmo modo, que seja preciso discutir a qualidade dos filmes. Mais do que isso, é preciso também entender de que maneira o modo de produção (as leis de incentivo) acaba moldando a forma dos filmes a partir do seu contexto (facilitando a vida de alguns tipos de filme e marginalizando outros).
Mas, se o esquema de produção é fato a se considerar para compreender os filmes, o contrário não vale. A ordem dos fatores embaralha o julgamento. Não é possível discutir a correção e validade de uma lei e de uma política a partir da avaliação (sempre questionável) dos filmes. Para questionar a justeza das leis, é possível usar argumentos factuais (o valor do orçamento, o local de origem, entre outros), mas não argumentos baseados em avaliações subjetivas - como são, sempre, as opiniões sobre filmes. Por conta dessa base subjetiva, a ampliação do específico para o geral soa autoritária. Por exemplo, o Paulo diz que, com exceção do Crime Delicado do Beto Brant, entre os filmes brasileiros de 2006 só tem tranqueira, a começar pelo "horror" de Irma Vap - O Retorno. Mas e se a gente discordar da avaliação dele sobre Irma Vap (que, se está longe de ser uma obra-prima, não me pareceu mau filme)? Aí a avaliação sobre leis vai por água abaixo.
Ou seja, para se crer na qualidade da discussão sobre as leis, é preciso acreditar que há avaliações "corretas", "objetivas", para os filmes. Não há. E, mais do que isso, é preciso acreditar que uma avaliação estética específica, de um único filme, pode servir como critério para uma consideração ampla sobre uma política pública contínua, como se uma ação cultural pudesse ser avaliada por resultados imediatos. Como já escrevi num comentário, é como se olhássemos para a ponte Rio-Niterói e disséssemos: "É muito feia essa ponte - seria melhor que o governo não desse mais dinheiro para fazerem novas pontes".
Em que se pese a diferença entre construir uma ponte e produzir um filme, na verdade a lógica do argumento é a mesma, é uma lógica furada da mesma maneira.

De resto, não concordo com os olhares apocalípticos: há coisa boa nos cinemas, assim como há coisa boa para estrear. Talvez o Paulo ou o Antonio não concordem comigo com relação aos filmes que eu consideraria bons (já sei que não gostaram de Brasília 18%, por exemplo). Mas é essa a regra do jogo, né?
Daniel Caetano