30.5.03

Duas coisas a avisar pra quem é do Rio ou vai estar por aqui estes dias. A primeira é que está rolando no Cine-Arte UFF e no CCBB do Rio o Festival Brasileiro de Cinema Universitário, com exibições de dezenas e mais dezenas de curta-metragens recentes, em sua maior parte inéditos, e mais debates, festas e tudo mais que se tem direito (incluindo a produção de um curta). Mais do que louvar a nova edição do Festival, a Contracampo vê de fato motivos a comemorar. Não custa lembrar que há dois contracampistas na organização, o Valentoni fazendo parte da equipe que coordena e produz o Festival há anos e a Marina trabalhando na equipe de produção.
Aproveitando o assunto de comemoração e festa, segue o segundo aviso: a Contracampo festeja sua edição 50 na Maldita de dois de junho, na Casa da Matriz. Sendo os dois editores habitués da área, já está certo que a pista dois terá discotecagem de ambos e, possivelmente, de outros contracampistas - ainda está em fase de negociação rolar um Jorge Ben básico.
E mais uma coisa: comemoramos também a visita ao Rio do Carim, que resolveu fugir um pouco daquele frio. Ficam aqui as boas-vindas ao compadre, só faltou ele arrumar um jeito de chegar a tempo para a festa!
É isso aí. Amanhã, todo mundo indo ver Os Cafajestes - depois, festinha do Festival em Niterói, que ninguém é de ferro.
(Daniel Caetano)

26.5.03

Valente sobre Cannes (3)
Enquanto isso, na imaginação dos críticos...
Pois é, vocês estão lembrados do meu pequenino post "Ah, la critique", não? Então, aí chegam os críticos e dão os seguintes três prêmios (via sua associação internacional, a Fipresci): na Competição Oficial, para o filme de Sokurov (o que eu acho que nem preciso mais comentar, né?); no Un Certain Regard, para American Splendor (que, numa mostra cheia de filmes arriscados, é "mais do mesmo" do look-Sundance); e na Quinzena (com filmes ainda mais arriscados), para o espanhol Las horas del dia, que eu não vi, mas que me foi descrito por muitos como um proto-Michael Haneke (certamente não como um elogio). Ai ai...
(Eduardo Valente)

Valente sobre Cannes (2)
Uma notinha importantíssima para todos os brasileiros: Dogville foi exibido em Cannes com 2 horas e 58 minutos de duração. No entanto, foi noticiado em Cannes que já há um corte de 2 horas e 20 minutos que será usado no lançamento comercial (não ficou claro se em todos os territórios). Só que Von Trier mesmo avisou: "meu filme é este que passou em Cannes, existe um outro corte que será exibido, mas não o reconheço como o meu filme." Portanto, cabe começar a se prestar atenção nisso, sob risco de só vermos no Brasil a versão original em DVD, algum dia. E eu confesso: não sei de onde se tiraria quase 40 minutos do filme sem ele perder o sentido que seu ritmo constrói.
(Eduardo Valente)

Valente sobre Cannes (1)
Afinal, as Palmas
Logo depois de ver Elephant, eu havia escrito aqui que Cannes havia visto o primeiro filme importante do ano, o primeiro para o qual precisaríamos voltar os olhos depois, repensar e discutir muito ainda. Assim sendo, esta idiossincrasia do júri, inesperada ainda que não de todo improvável, deve ser elogiada (o filme foi recebido, por exemplo, com frieza na sessão para os críticos). O mesmo deve ser dito da premiação do filme turco Uzak, que se sabia um grande favorito aos prêmios que ganhou desde o dia de sua exibição, logo no início do Festival. E mesmo o filme de Denys Arcand era um enorme favorito para o prêmio de roteiro e os de interpretação. No entanto, onde o júri certamente errou foi em concentrar o prêmio de direção e a Palma em um só filme. Não que Van Sant talvez não os mereça, mas é porque há um significado mais forte nessa concentração, por um simples motivo: ela vai inclusive contra as regras do Festival, que depois da vitória múltipla de Barton Fink em 1991 decidiu que entre a Palma, o Grande Prêmio, o Prêmio do Júri e o de Direção não poderia haver coincidência. Portanto, como consta na cobertura dos jornais franceses aos prêmios, Patrice Chereau precisou pedir a autorização de Gilles Jacob (o "dono" do Festival) antes de dar este prêmio duplo. E, aí sim, o equívoco: porque ao precisar quebrar uma regra para dar seus prêmios coincidentes, Chereau (possivelmente querendo mostrar o quanto o júri apreciou o filme de Van Sant) faz crer que não havia mais nenhum filme merecedor de prêmios em Cannes, o que chega a ser um tapa na cara de qualquer espectador razoavelmente inteligente. Como eu vinha adiantando, discutir cabeça de júri é uma inutilidade. Mas o que não se pode negar é que, além dos três filmes principalmente premiados, houve outros dois filmes no Festival que monopolizaram a atenção de todos: o de Von Trier e o de Eastwood. Esta premiação, ao omiti-los, torna a lista das Palmas um retrato infiel do que foi o Festival. Provavelmente a polêmica e direta posição política do filme do dinamarquês (assim como sua postura nem um pouco conciliadora) ofendeu a membros do júri (como se cogitava), mas o pior é imaginar que o filme de Eastwood tenha sido visto como "apenas um eficiente filme americano clássico". Aos dois filmes, é fato, está assegurado um futuro de importantes conquistas, se não de prêmios, certamente de notoriedade, e neste ponto o júri fez bem ao pegar dois filmes como os de Van Sant e do turco Ceylan e trazê-los à frente dos olhos do mundo (no Brasil, por exemplo, os filmes de VonTrier e Eastwood já têm lançamento garantido, assim como o de Arcand, mas nenhum dos outros premiados tem). Mas deveria haver espaço para lembrar destes dois filmes que, no frigir dos ovos, comporão com Elephant o trio mais importante do ano, pela reflexão que os três fazem em conjunto de uma América que é o centro de atenção do mundo hoje. Da mesma forma que o japonês Shara faria um complemento genial ao turco Uzak no retrato das pequenas (e por isso mesmo enormes) questões humanas. Mas, pelo menos, as idiossincracias do júri não acharam espaço para Sokurov e Greenaway, e isto é sempre uma boa notícia. Optou-se por um cinema mais vivo do que morto.
(Eduardo Valente)

Valente em Cannes (27)
- Crimsom Gold (Sang et Or), de Jafar Panahi - O filme que fechou a sessão Un Certain Regard é o novo trabalho do realizador de O Balão Branco e que ganhou o Leão de Ouro em Veneza por O Círculo, tendo aqui ainda o roteiro de Abbas Kiarostami. Panahi faz um filme de uma secura dolorosa, que começa com um plano-sequência onde a combinação do que se mostra com o que está fora da tela (mas muito presente pelo som) cria um dos inícios de filme mais impressionantes em muito tempo. A partir dele entramos num flashback, no qual seguimos a vida do personagem apresentado no primeiro plano e tudo que o levou até a situação do início do filme. Panahi filma este personagem lado a lado e nos mostra uma fissura de classes na sociedade iraniana que, não por acaso, vai nos lembrar muito o Brasil. O personagem principal pode ser visto, inclusive como uma versão iraniana do nosso O Invasor, só que com o detalhe importantíssimo que sua invasão não é nem "pedida" pela classe mais alta (como no contrato do filme de Beto Brant), nem é proposital e premeditada como a do Anísio de Paulo Miklos. Assim sendo, os tons aqui são bem mais naturalistas e o resultado final muito menos cínico do que no filme brasileiro, mas o jogo entre classes e o painel traçado podem ser assemelhados. Um último elogio ao filme de Panahi: depois de três filmes muito bem recebidos, ele dá aqui um passo rumo a uma narrativa mais sombria, mais lenta e mais sutil nos seus efeitos, provando ser um cineasta importantíssimo no panorama atual.
(Eduardo Valente)

25.5.03

Valente em Cannes (26)
As estrelinhas do Duda para a Competição Oficial:
Mystic River - ****
Dogville - ****
Shara - ***
Uzak - ***
Elephant - ***
Purple Butterfly - **
Bright Future - **
The Brown Bunny - **
Ce Jour-Lá - **
Les Égarés - **
Tiresia - **
Swimming Pool - *
Les Invasions Barbares - *
Carandiru - *
La Petite Lili - *
Pere et Fils - 0
The Tulse Luper Suitcases - NV
Panj é Asr - NV
Cuore Altorve - NV
Les Côtelettes - NV
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (25)
Brincando de loteria
Prêmios dados por júri não devem ser muito discutidos, porque refletem tão somente a opinião de cinco ou sete pessoas sobre um grupo de filmes, pouco mais do que isso. Comparo isso ao Oscar por exemplo, que, se certamente não mede mérito cinematográfico (nada mede, aliás, não se deve mensurar arte com um resultado final), tem uma lógina interna pelo que representa a tal "Academia", que é um coletivo bastante numeroso com um olhar sobre o cinema americano e o que ele deve ou não ser, etc. Júris não são assim porque são colocados juntos apenas para um festival, muitas vezes com pessoas de gostos completamente diferentes e que nem se conheciam antes do Festival. Por isso é meio absurdo tanto querer adivinhar de que filmes essas pessoas gostam quanto discutir depois se foi "justo" ou não. Isso dito, é claro que as pessoas que estão seguindo a cobertura (espero que não seja só o Renato!! hehe) esperam uma mínima idéia sobre a Palma de Ouro, etc (embora eu venha dando algumas nos últimos dias). Então, lá vai, já feita a ressalva acima de que isso não é nada mais do que especulação completa baseada em parte no meu gosto e no que eu ouvi de todas as pessoas com quem me comunico mais por aqui.
A Palma de Ouro deveria estar, se o júri se deixar levar pelos melhores filmes simplesmente, entre Von Trier e Eastwood. E não parece absurdo que assim seja. Caso haja uma reviravolta pelo lado "humano", pode-se apelar para o filme do Denys Arcand, que não chega aos pés dos dois acima, mas "se comunica" mais com as pessoas (o que quer que seja isso).
No entanto, essas seriam Palmas de "consenso", digamos assim, e muitas vezes acontecem "disensos" em júri. Nesse caso, os três acima devem com certeza sair daqui com prêmios, mas pode ser que sejam o do Júri, Direção, Roteiro (este parece a cara do filme de Arcand). E aí sempre pode subir uma idiossincracia de júri, que por exemplo é o caso clássico de Rosetta e Sob o Sol de Satã - que, filmes admiráveis que eram, na verdade não estavam cogitados por ninguém para ganhar, pelo seu radicalismo. Mas, se o presidente do júri resolve ir por alguma ordem pessoal de gosto... Aí tem alguns filmes que podem levar: Elephant, Père et Fils, Tulse Luper, Purple Butterfly e o próprio Carandiru são os tipos dos filmes "love me or leave me", e se o júri tiver amado, sabe-se lá...Três filmes parecem também bastante próximos de alguma premiação, o turco Uzak, o filme de Samira Makhmalbaf e o japonês Shara (mais o primeiro do que os outros), mas espera-se que briguem pelos outros prêmios já citados muito mais do que pela Palma de Ouro.
Finalmente, há uma lista de filmes que surpreenderão se ganharem qualquer coisa (notem que me refiro aqui aos prêmios dados para o "filme", ou seja, Palma de Ouro, Direção, Grande Prêmio, etc. não me refiro a interpretações ou prêmios técnicos porque aí é loteria e gosto pessoal mesmo!), e eles são por ordem de probabilidade: La petite Lili, Swimming Pool, Ce jour-lá, Les égarés, Bright Future, Tiresia, Il Cuore Altrove, The Brown Bunny, Les côtelettes. Mas, mais uma vez: se este é o "outlook" do momento, o júri pode negar tudo que eu disse. Afinal eu nunca conversei pessoalmente com Patrice Chereau, Steven Soderbergh, Meg Ryan, etc, pra saber do que que eles gostam no cinema...
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (24)
Últimos filmes
- Shara, de Naomi Kawase - Apenas um dia depois de termos que dar ouvidos a mr. Sokurov e suas fascinantes teses sobre a decadência do mundo moderno e da necessidade de se buscar ternura em abstrações visuais que disfarçam sua contemporaneidade em busca de um ideal artístico do século XIX, nos chega do Japão a surpresa final desse Festival. A jovem Kawase (34 anos, em seu terceiro longa, tendo ganho a Camera D'Or com o primeiro, em 96) celebra a vida de hoje mesmo e a ternura e a possibilidade de se buscar alívio das perdas irreparáveis nos outros seres humanos. Dito assim parece tão pomposo, mas o mais belo deste filme é que se trata de uma poesia do cotidiano, muitas vezes lembrando as ferramentas do documentário (de onde, aliás, vem Kawase), para construir um painel rápido da vida interligada de duas famílias numa pequena cidade japonesa. Em ambas, há no passado o trauma de uma perda, mas há no presente a chance de curar esta dor com um senso de comunidade como não se vê no cinema há algum tempo. Kawase consegue alguns planos e sequências memoráveis (em especial o da festa popular e uma corrida da escola para casa), mas nenhuma mais do que a final, uma sequência que de tão absurdamente simples não vale descrever aqui, e que abunda com uma generosidade e um amor tamanho pela vida (onde o plano final, amigos, eu quero algum dia filmar algo da relevância daquilo). Um filme para nos faz ver que o cinema, ao contrário do que queiram uns e outros, está longe de uma arte morta. Mortos são os olhares destes que, por exemplo, enxergam neste ano uma suposta seleção fraca na Competição (basta ir ler alguns dos nossos críticos e tantos de fora também), simplesmente por se basearem no apego a nomes de cineastas que não estiveram aqui ou a uma concepção de cinema muito mais preocupada com o seu umbigo (o do cinema) do que com o mundo. A seleção deste ano, mesmo que de fato não excepcional, foi uma das mais energéticas, pela quantidade de propostas distintas de cinema e pela disposição, em especial de alguns jovens cineastas, em ainda se interessar pelo que esta forma de arte tem a oferecer de novo ou, em termo melhor, de renovado.
- Tulse Luper Suitcases, de Peter Greenaway - Mais um filme do qual vou me eximir de "criticar", embora desta vez o problema não tenha sido sono. Não pude ir na sessão de crítica e, por isso, tive que ir pela primeira vez nesse Festival numa sessão oficial noturna. Se por um lado, (sim, podem rir, eu riria) isso significa ter que colocar um terno preto e uma gravata borboleta, por outro (muito mais incômodo para mim como espectador e crítico) significa que ao invés de escolher o lugar na sala como na sessão de críticos, eu sou obrigado a ficar no topo de uma arquibancada gigantesca (que é o segundo andar do Grand Theatre Lumiere), não só vendo o filme quase com uma lupa, como ainda tendo que ver meia Cannes passear por mim saindo do filme (e, diga-se, isso não é maldade com o Greenaway, eles fazem isso em todas as sessões - as sessões noturnas, pelo menos no chamado balcão, são apenas para os senhores e senhoras de Cannes ou franceses de férias que acham a maior aventura da Terra colocar um smoking ou um longo e passear no tapete vermelho do Palais du Festival, quiçá sendo visto em casa por algum parente na TV - ninguém (ou, sejamos justos, muito poucos) se importa com o filme. Especialmente quem me conhece sabe o sofrimento que é ver um filme nessas condições e a absurda dificuldade de concentração. Por isso, am absoluto respeito ao trabalho do artista, me recuso a passar julgamento nessas condições. Mas posso dizer o que eu vi, objetivamente: quem acha que Greenaway é barroco, auto-centrado e pomposo ainda não viu nada. Este filme é como Peter Greenaway Reloaded, não por acaso o personagem de Luper era uma das "brincadeiras internas" favoritas de Greenaway desde os primeiros curtas. O que vemos é um dos mais impressionantes (sem significado bom ou ruim no termo) espetáculos de excesso de informação, imagens, sons, o que pelo menos dá algum interesse a este trabalho que é menos "metido a sério" do que alguns dos mais recentes de Greenaway, e por isso ganha até pontos. Obcecado com seu próprio trabalho e as relações labirínticas dentro dele, e a criação de uma mitologia baseada em listagens, enumarações e citações constantes a si mesmo e a tudo mais que possa existir no mundo, que ninguém diga que Greenaway não leva sua proposta até o fim nesse filme.Se é bom, como eu disse, eu não vou poder dizer ainda (mas suspeito que... bem... não), mas foi no mínimo bizarro vê-lo como fechamento do Festival depois do filme de Kawase. No mínimo servem como prova dos olhos abertos para todos os lados pela curadoria: o mais excessivo dos cineastas logo depois do mais minimalista e simples dos filmes.
(Eduardo Valente)

24.5.03

Valente em Cannes (23)
A saída no meio do Blier me leva a um outro tema interessante, que são os filmes que eu não vi. Afinal, como baseei esta cobertura do dia a dia mais nos filmes que eu vi do que numa jornalística listagem de títulos em exibição, acho que vale falar dos filmes que passaram aqui e tiveram alguma repercussão, mas eu não posso atestá-la pessoalmente. Na competição, além do Blier eu perdi o da Samira Makhmalbaf (no qual dormi solenemente, mas, como já disse, pelo meu cansaço de recém-chegado e não pelo filme) e o de Pupi Avati (esse eu dormi mais ou menos pelo cansaço e mais ou menos por decisão pessoal de recuperar o cansaço num filme que não estava me interessando). Na seleção oficial fora de competição eu me retirei do realmente péssimo Qui a tué Bambi, e fora isso perdi pelo menos três filmes que foram muito bem falados: a animação francesa Les Triplettes de Belleville (já comprado para o Brasil), o documentário do Wim Wenders sobre blues (primeiro de uma série de 7 filmes de vários diretores - um deles, Scorsese), chamado The Soul of a Man, e o documentário do Erroll Morris sobre o ex-secretário de Defesa americano nos anos 60 Robert McNamara, chamado The Fog of War. No Un Certain Regard eu não vi dois filmes chineses que receberam "mixed reviews", mas parecem propostas interessantes, All Tomorrow's Parties de Yu Lik Wai e Drifters, de Wang Xiaoshuai (que está em cartaz em SP com Bicicletas de Pequim). Além disso falou-se bem do marroquino Mille Mois e do australiano Japanese Story (ambos concorrem ao Camera D'Or, então vale estar atento).
Na Quinzena dos Realizadores, me deixou especialmente chateado não ter visto Gozu, de Takashi Miike, que causou grande impressão em quem o viu. Além deste, um dos filmes mais falados no Festival foi Osama, o primeiro filme feito no Afeganistão pós-2001 (não é documentário sobre "o homem", ok). O filme do João Botelho (A Mulher Que Queria Ser Presidente dos EUA) foi muito criticado e não vi ninguém falando bem dele. E, finalmente, queria ter visto o mezzo-documentário italiano L'Isola, o documentário americano Bright Leaves (sobre a indústria do tabaco) e o iraniano Deep Breath. Como a Quinzena era o lugar do último filme do dia, deve-se citar ainda quatro clássicas dormidas que eu dei, das quais duas foram absolutamente conscientes (do tipo "não estou gostando do que vejo") e duas não (do tipo "fica aberto olho, funciona cérebro, vamos lá... ZZZZ"). Os que perdi sem querer foram o romeno Niki et Flo, do experiente Lucian Pintillie, uma mistura de comédia rasgada com estudo de personagens naquele estilo bem árido e irônico do Leste Europeu; e o francês Pas de Repos Pour les Braves, de um cineasta estreante (Alain Guiraudie), que era uma comédia na linha surrealista que em grande parte não estava me interessando muito, mas confesso a eventual boa piada e uso da linguagem. E os que eu me coloquei mesmo para dormir foram o português Quaresma, de José Álvaro Morais, que primava pela narrativa confusa e truncada sem muito motivo que as pedisse; e o francês La Chose Publique, de Mathieu Amalric, que era simplesmente francês demais para mim (ou seja, uma falação interminável num tom entre a comédia e a observação política excessivamente referencial às questões da Gália que não entendemos de todo, e bastante óbvio na parte das relações pessoais).
E, finalmente, há a Semana da Crítica, que acontece num cinema mais afastado, e onde nem consegui chegar a ir nenhuma vez, embora tenha sempre filmes interessantes. Lá eu ouvi ótimas coisas em especial do dinamarquês Reconstruction, do franco-georgiano Depuis qu'Otar est Parti (que ganhou o prêmio principal da seção) e do francês Elle et des Notres. Espero que assim vocês tenham um olhar mais global do Festival, ultrapassando os limites do meu organismo e seu sono eventual, e do meu calendário e possibilidade de encaixar filmes ou privilegiar um ou outro.
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (22)
Les côtelettes, de Bertrand Blier - Eu puxo um parágrafo específico sobre o filme, mas na verdade vou falar da minha experiência pessoal de ontem e não do filme, por um motivo simples: só aguentei 20 minutos. Trata-se, basicamente, de uma comédia que não tem graça nenhuma. E isso em pleno último dia do Festival representa uma impossibilidade de cognição para o pobre crítico, esgotado de filmes (tanto que ontem me dei por feliz por ter visto o Eastwood de manhã e, tirando essa saída no início do Blier, não vi mais nada o dia todo). Os amigos que ficaram atestaram porém que o filme recebeu a mais longa e mais "coletiva" vaia das sessões todas (digo coletiva porque muitas vezes um filme tem três ou quatro vaiando, outros apoiando, etc). No entanto, não posso emitir julgamento de fato sobre o filme (e prometo, aliás, que ele passando no Brasil eu vou lá para ver inteiro) porque, como já disse alguém certa vez, se você sai de um jogo de futebol aos 20 minutos não pode escrever uma análise dele porque nem sabe quanto foi o placar final. Então, não se trata aqui de uma crítica negativa do filme de Blier e sim de constatar que a mim foi completamente desinteressante me dedicar a ele ontem, e que a resposta da sala de cinema foi a descrita.
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (21)
Eu tenho prometido falar mais de Dogville, mas a verdade é que pra falar do filme só escrevendo uma crítica bem maior, o que, além de não dar tempo de fazer aqui, eu realmente questiono se tem utilidade, visto que o tipo de crítica com a qual gostamos de trabalhar aqui na Contracampo é sempre para complemento a se ver o filme. Tratar em detalhes e discussões profundas de filmes que ninguém viu ainda... acho inclusive desestimulante ao leitor. Por isso, acho que vou ficar num comentário bem rápido: Dogville consegue o raro feito de misturar a experimentação de linguagem (onde o trabalho de encenação de Von Trier e de fotografia e conceito de som são impressionantes) com um discurso forte, articulado e, mais do que tudo, radical. É um filme sobre a violência que está guardada no coração da América, mas impressiona a forma como Von Trier consegue fazer isso sendo direto (no discurso, no final absolutamente chocante) e sutil ao mesmo tempo (no local escolhido para encenar a história, nos pequenos detalhes de cena, nos sotaques e personagens, nas atuações em suma). Mais do que isso, só mesmo com umas três páginas, e acho que prefiro fazer isso assim que o filme puder ser visto no Brasil em algum momento.
(Eduardo Valente)

Valente em Cannes (20)
A competição ganhou real vida: agora há pelo menos algum suspense real quanto à Palma de Ouro. Isso porque, como eu adiantava, já havia uma certa torcida para que surgisse algum filme que pudesse tirar do Von Trier uma segunda Palma tão cedo. E o filme de Eastwood encaixa-se em uma série de possibilidades: prêmio pela carreira, filme ao mesmo tempo reflexivo e totalmente palatável (portanto com menos possibilidade de dissenção interna no júri). E, talvez o mais interessante, em pleno momento político atual, premiar um americano. Porque se a doutrina Bush é detestável, igualmente o é anti-americanismo bobo que periga tornar-se doutrina corrente. Premiar o filme de um americano típico, republicano (que trabalha aqui com dois dos atores mais abertamente críticos de Bush, Penn e Robbins), mas capaz do tipo de complexidade e riqueza criativa que tem Eastwood, seria um dos mais generosos atos políticos. Mas será que o júri irá tão longe assim no raciocínio? Mesmo que fique só no filme, seria com justiça o prêmio.
(Eduardo Valente)

Valente em Cannes (19)
Paralelas e Transversais - versão Cannes
Três filmes em três mostras diferentes lidaram no mesmo dia com a morte de um ente querido e a dificuldade de se lidar com ela - e diferentes presenças "físicas" destes mortos.
- The Brown Bunny, de Vincent Gallo - Junto a Dogville, foi a grande sensação da Competição deste ano - ainda que pelo lado oposto. Na sessão da crítica foi recebido com igual número de gargalhadas e saídas da sala, e considerado quase unanimemente como a pior seleção do festival para a Mostra Competitiva em muitos anos (a tal ponto que ontem seu diretor deu uma entrevista se desculpando pelo filme, vejam só - ou melhor, não pelo filme, mas por não ter conseguido fazer com que ele se comunicasse com os críticos). Porque "quase unanimemente"? Porque há quem goste dele. Eu incluído aí. Gallo faz um filme que responde à pergunta corrente do mundo do cinema americano pós-Miramax "afinal, o que é um filme independente?". Este é, feito com quase nenhum dinheiro, equipe abaixo do mínimo, mas mais do que isso, um espírito de confrontação (e confrontação foi o que ele conseguiu, Gallo não tem que se desculpar pela mesquinharia crítica) com as normas do grande cinema. Nele, um homem dirige seu furgão do Leste ao Oeste dos EUA (indo de uma corrida de motocicleta para outra - ele é corredor), e sofre de uma melancolia não explicada. Alguns poucos encontros com algumas mulheres, cenas em hoteís e cafés, mas acima de tudo, muita, muita estrada e muito silêncio. Disso é composta boa metade do filme de Gallo, e daí o incômodo. Só que sua filmagem é não só bela como profundamente crivada de significado (toda a tradição do road movie americano não precisa ser trazida à tona de novo), e há uma hipnose fascinante neste processo de perda de si mesmo que faz lembrar em momentos Antonioni e, em outros momentos, o filme de Gus Van Sant do ano passado, Gerry. Só que, ao contrário destes, Gallo no final faz uma explicação existencial do que se passava até ali, que embora soe diminuidora num primeiro momento, ganha força e pertinência e empresta um tal grau de melancolia e dureza ao filme que a poesia dele se multiplica. Isso tudo dito, está longe de ser um filme perfeito, mas é de suas imperfeições que sai o melhor dele, e é dos mais consistentemente intrigantes em muito tempo. Como isso pode ser desprezado como lixo, me escapa.
- Kiss of Life, de Emily Young - Filme de estréia da curtametragista inglesa (que havia ganho a Cinéfondation), trata da morte de uma mãe de família. Seu marido estava fora do país, e enquanto tenta voltar para casa desconhece este falecimento (mas passa por outras provações porque está saindo do Kosovo em plena guerra). Vemos então os filhos do casal, o pai da mulher e o que pode ser um próprio fantasma dela lidando com a nova situação enquanto o marido luta para voltar. A estrutura destas montagens paralelas torna-se um pouco repetitiva e há uma frieza pouco desejada no filme, mas, quando acerta, a diretora Young cria momentos de forte poesia audiovisual que demonstram um olho e ouvidos promissores para o cinema, mas que podem ganhar estrutura narrativa mais resolvida.
- Des Plumes dans la Tête, de Thomas de Thier - Outro filme de estréia, desta vez belga, na Quinzena dos Realizadores. Lida com assunto muito semelhante ao de Young, só que aqui o parente perdido é um filho pequeno e a mãe tem que lidar com isso. Como Young, Thier consegue momentos visuais impressionantes (em especial o plano inicial e o final, preciosos), mas, ainda mais do que ela, lhe falta consistência narrativa. Mais do que isso, sobra uma certa vontade de colocar a direção do filme acima do drama dos personagens, onde sempre se nota mais a realização do que a emoção. Certamente é reflexo de um excesso de "estilo" que se parece querer imprimir cada vez aos filmes que brigam por espaços em grandes festivais.
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (18)
Hoje fui à coletiva de Sokurov, só para dar uma chance de ver que talvez eu é que tivesse uma predisposição contra o filme (embora não tivesse...), etc. Mas o cara falando (como mesmo os fãs dele, como o Cléber Eduardo, podem atestar) é muito pior do que filmando. Entre as preciosidades: quando perguntado sobre o latente potencial homoerótico da sua filmagem da relação entre pai e filho, ele disse que este olhar "sujo" estava nos olhos de quem via o filme. Disse que a sujeira tomava a nossa sociedade moderna, e que ele ansiava por uma volta aos tempos de uma real ternura entre os seres humanos e de códigos morais mais firmes. Isso em meio a uma diatribe onde ele afirmou que, por mais criticável que fosse o socialismo, esta qualidade ele tinha: não havia decadência moral - ou seja, o homem é anti-socialista (sempre foi), mas gosta justamente do aspecto ditatorial do mesmo. Não feliz com isso, afirmou a crença numa arte bela, como a literatura do século XIX, e acima de tudo numa arte acima da sujeira do mundo atual. Ah, e isso tudo dito com um discurso caudaloso que lembra de fato os melhores oradores entre os nossos ditadores favoritos (aliás, ele anda cada vez mais parecido fisicamente com o Hitler, diga-se), e que o fazia responder a perguntas direcionadas aos atores (e terminando dizendo "estou certo que eles concordam comigo, passo a palavra a eles") e ainda agradecer o subvencionamento estatal do Ministro da Cultura russo, que estava estranhamente sentado na mesa da coletiva. Foi um espetáculo dos mais estranhos, e que me deu a certeza: o conservadorismo francamente fascista dessa "bela arte" Sokuroviana (que até podia e foi interessante, mas se tornou simplesmente auto-indulgente ao extremo) deve ser deplorado. E mais: sugestão que surgiu aqui nos corredores - que ele completasse sua tetralogia sobre os ditadores fazendo um quinto filme com o making of da filmagem dos outros quatro.
(Eduardo Valente)

23.5.03

Valente em Cannes (17)
- Mystic River, de Clint Eastwood - Senhoras e senhores, o senhor Clint Eastwood nos traz um filme absolutamente maior, que pode perfeitamente terminar dando para ele a Palma que Von Trier já ia levando por default. Na verdade, são filmes complementares: se o de Von Trier é, como ele mesmo diz, um espelho da América vista de fora, o de Eastwood é uma profunda reflexão sobre ela vista muito lá de dentro. E o que é melhor: como principal herdeiro da tradição americana clássica de filmar, trata-se de uma reflexão não argumentativa e estudada (como é o filme de Von Trier), mas simplesmente colocada na tela como um bom e velho "simples filme dramático e policial". Na coletiva após o filme (e ter sido a mais concorrida depois da de Von Trier diz tudo), Eastwood deixava clara a diferença: ao invés da ironia e das frases provocadoras cheias de conteúdo político do dinamarquês, simples respostas sobre a estrutura dramática do filme, o trabalho com os atores, a escritura do roteiro. Lembrou o velho John Ford e sua clássica resposta "It's only westerns". Mas, assim como os filmes de mestre Ford, é muito mais do que isso. Por trás da história de três amigos de infância que se reencontram em meio ao dramático assassinato da filha de 19 anos de um deles (um como pai sofrendo, o outro como o policial que investiga o caso e o terceiro como suspeito), Eastwood arma uma teia de relações absolutamente complexa que fala de violência, vingança, família, ecoando uma série de situações de origem claramente shakespereana. Isso tudo com um domínio da mise-en-scène, um foto em contraste belíssimo e acima de tudo um elenco perfeito, no qual Sean Penn se firma como o grande ator americano de sua geração para o fim de todas as dúvidas. Um tremendo filmaço que reitera o melhor que a América pode produzir em termos de uma arte que, em meio a um processo industrial, reflete e repensa seu próprio país como nenhum outro cinema do mundo sabe fazer.
(Eduardo Valente)

Valente em Cannes (16)
Mais filmes
- Robinson's Crusoe, de Lin Cheng-Sheng - Segundo representante da China (na verdade, Taipei) no Un Certain Regard. É um filme bastante mais comportado do que o representante da Competição, mas talvez por isso mesmo bem menos interessante. Segue a vida no dia a dia de um corretor de imóveis que sonha em largar tudo e comprar uma ilha no Caribe. O interessante no filme é uma grande melancolia com a vida moderna e a busca incessante do dinheiro, mas ao mesmo tempo retrata uma certa acomodação dentro deste sistema. Só que o ritmo é bastante modorrento, e Cheng-sheng não chega a dizer nada de muito novo ou de forma muito especial.
- Les Invasions Barbaires, de Denys Arcand - O filme do canadense Arcand é uma continuação de O Declínio do Império Americano e encontra os personagens em plena meia-idade, lidando com o câncer terminal de um deles. Na verdade, assume claramente o papel de um grande balanço de geração que tem como melhores qualidades muito humor e ironia (que sobra para os serviços públicos canadenses ou para os EUA), e bastante qualidade no jogo elenco-diálogos, que tornam o filme altamente palatável ao mesmo tempo que reflexivo. Fez muito sucesso com a crítica (na maior parte contemporânea dos personagens, se identificando muito com esse balanço), e é disparado o filme mais indicado pra virar sucesso nos Espaços Unibanco da vida. No entanto, se Arcand filma muito bem, o que não se pode deixar de notar é o saudosismo inerente a este tipo de trabalho (onde o melhor do mundo ficou no passado), e acima de tudo, uma certa auto-indulgência superior com esta intelectualidade "proto-burguesa" como o sal da terra, ainda que numa geração aqui considerada quase-perdida. No que tem de mais leve e menos reflexivo é um filme agradabilíssimo, mas suas reflexões e conclusões são muito questionáveis, especialmente por quem ainda acredite que há mais a ser feito por este mundo.
- Les Lionceaux, de Claire Doyon - Exemplar francês da Quinzena dos Realizadores, trata-se de um filme absolutamente lúdico, no registro da fábula anti-naturalista, sobre a briga de duas irmãs pelo amor de um homem. Funcionando quase sempre numa mistura de lirismo e humor, o filme não chega a ser bem sucedido, mas consegue ser agradável aos olhos e ouvidos, eventualmente. Seu latente "juvenilismo" é ao mesmo tempo seu maior defeito e sua fonte de frescor.
- Tiresia, de Bertrando Bonello - Os que gostaram ou não do filme anterior de Bonello (O Pornógrafo) não podem deixar de reconhecer que há no trabalho do diretor uma profunda veia racionalista, onde a compreensão do mundo e a realização do cinema se dá pelo meio do pensamento articulado, de observações bastante reflexivas e extremamente "apalavradas". Seu novo trabalho pode ser visto tanto como um aprofundamento disso (mais uma vez há uma certa solenidade na encenação, além do tratamento de grandas questões, neste caso adaptadas diretamente da mitologia), como um passo adiante, no caso do trabalho com os elementos audiovisuais. Ao tentar dar forma atual ao mito de Tirésias, ele usa alguns artifícios extremamente interessantes como uma divisão bem clara em duas partes (onde a personagem principal é interpretada por duas pessoas diferentes em cada uma delas, uma mulher e um homem) e uma encenação bastante antinaturalista, na primeira delas, mas de enorme beleza e poesia formal. É um filme de diálogo complexo, mas ao mesmo tempo de até inesperada sedução aos sentidos do espectador que se dispuser a ser seduzido. E ainda tem o interesse adicional aos brasileiros que Tiresia surge como uma transexual brasileira, com direito a muitos diálogos em português.
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (15)
Um esclarecimento que raramente é dado na imprensa brasileira precisa ser dado aqui: há em Cannes geralmente três tipos diferentes de sessão para os filmes da Competição. A sessão fechada para a imprensa, as sessões para público sem o diretor e a sessão oficial para o público com o diretor. Este esclarecimento é importante porque explica algumas dualidades como se ter dito num dia em um jornal que "Carandiru foi arrasado pelo público" (no que era de fato uma sessão de críticos), e no dia seguinte que foi aplaudido por 5 minutos (esta na sessão oficial). As melhores sessões para se ir (mas nem sempre se pode escolher, porque tem que compor o horário, afinal) são as de público, sem o diretor. Porque nelas nem há a puxada de saco ao artista, nem o climinha "nós contra o filme" das sessões de crítica.
(Eduardo Valente)

22.5.03

Valente em Cannes (14)
Ah, la critique...
Há um fenômeno muito interessante em Cannes este ano. Como se sabe, muitos dos diretores com os quais a Seleção Oficial costuma contar não conseguiram terminar os novos filmes a tempo para Cannes (entre eles Coen, Tarantino, Kusturica, Kiarostami, Manoel de Oliveira - embora sobre este corra o boato de que ele tenha terminado e o filme tenha sido recusado - e até mesmo Ingmar Bergman, que para quem não sabe está terminando um filme). Por isso, a própria direção do evento (pelo menos em boca pequena) admite que tinha poucas opções e teve que fazer uma seleção mais "arriscada", só que no melhor dos sentidos (mais filmes de jovens, etc). Só que é impressionante como a crítica de cinema talvez seja uma das forças mais conservadoras no mundo artístico. Defensora ferrenha de um certo "middlebrow" total, ela vocifera contra filmes considerados "comerciais" demais para Cannes (como o do italiano Pupi Avati), mas também acha que os filmes arriscados (como os de Bonello, Kurosawa, Gallo, Le You) não são dignos do Festival. Chega a ser ridículo o desinteresse com que estes filmes (todos eles INTERESSANTÍSSIMOS) foram tratados, desprezados, ridicularizados. Se tem algo envelhecendo muito é a crítica de cinema, as sessões no geral parecem os chás da Academia de Letras... sem qualquer imortal presente.
(Eduardo Valente)

Valente em Cannes (13)
A estréia mundial de Filme de Amor, ontem, foi brindada com as reações radicais que se espera de um filme de Bressane (e este, aliás, é dos mais radicais entre os recentes). Metade da sala (aproximadamente) saiu no meio do filme, mas os que ficaram aplaudiram com bastante força no final (apenas um cidadão teve a impressionante disposição de ficar uma hora e quarenta assistindo para vaiar no final). Sobre o filme, eu prefiro não falar muito porque é um trabalho de muitas camadas e difícil de se ver às 22h como o sexto filme de um dia que começou às 8h da manhã. Afinal é um filme que pede, mais do que tudo, a disposição de se entregar de fato a ele, e não seria possível fazê-lo (e eu nem tentei, me coloquei ali no papel de repórter vendo a estréia mundial do filme e vendo as reações muito mais do que o filme que, afinal, veremos no Brasil em breve).
Falando de estréias de filmes no Brasil, estou apurando aqui os filmes que foram comprados por distribuidoras brasileiras, e quero postar uma lista completa semana que vem (lembrando que várias negociações continuam pelos meses seguintes, Tiros em Columbine só foi comprado pro Brasil em 2003, mesmo tendo passado em Cannes 2002). O que se sabe de fato até agora são algumas coisas apenas, como: Dogville, Swimming Pool, Les Invasions Barbaires, Kitchen Stories, James Journey Through Jerusalem (filme da Quinzena sobre um imigrante africano em Israel).
(Eduardo Valente)

Valente em Cannes (12)
Outros filmes
- Hoy e Mañana, de Alejandro Chomski - O segundo argentino da Un Certain Regard. Torcemos muito sempre pro cinema argentino (ao contrário do futebol), mas Chomski nessa sua estréia não consegue fazer muito de interessante, mesmo com toda a atualidade de seu tema (uma jovem de classe média precisando fazer de tudo para pagar suas contas - e por de tudo vocês certamente já sabem a que me refiro). O problema de Chomski é lidar com um tema absolutamente clichê, e fazê-lo de uma forma onde ele não só não apresenta nada de novo (seja em conteúdo ou forma), mas ainda cai em várias das armadilhas morais que o tema apresenta (onde há uma forte noção de culpa por cima de tudo, não da personagem, e sim do próprio diretor que precisa fazer a personagem então passar pelo maior dos calvários possível).
- La Petite Lili, de Claude Miller - Quando chegamos ao Festival o rumor era de que havia um forte desejo de se dar a Palma de Ouro a um filme francês (afinal, eles eram um quarto da competição, há muito tempo não ganham e Von Trier tinha contra ele a Palma recente). Bom, com a exibição hoje do filme de Miller, só resta ver se Bertrand Blier fará um filme irretocável, porque fora disso as chances gaulesas são pequenas. Miller adapta e atualiza A Gaivota de Tchekov, mas o que ele faz mesmo é banalizar e tornar excessiva uma obra de uma sutileza fenomenal. O filme não chega a ser péssimo, mas passará em branco, ou pelo menos deveria.
- Purple Butterfly, de Lou Ye - O representante chinês da competição é um trabalho dos mais complexos e ricos em nuances (embora a crítica no geral o tenha descartado por não ter entendido a história - numa mistura de impaciência, pois ela se revela aos poucos mesmo, e de ignorância mesmo, seja histórica ou por considerar que não dá para diferenciar muitos chineses em cena - e é difícil mesmo, em primeiro olhar, mas afinal os personagens vão se construindo oras). No começo parece que será um épico à la Indochina, cheio de valores históricos e excessos de ostentação vazia. No entanto, ele vai lentamente se tornando uma sinfonia audiovisual de enorme sutileza, com momentos profundamente abstratos de montagem e imagens em idas e vindas temporais, com uma fotografia que é absolutamente impressionante o tempo todo. E, ao se desvelar como trama totalmente só nos últimos planos (um deles, o traveling mais impressionante em muito tempo), dá uma dimensão pessoal e trágica ao contexto histórico (da invasão japonesa à China) que o torna especialmente relevante. Um dos filmes do Festival que pede urgente revisão, e muito mais carinho e tempo do que todos aqui têm a oferecer.
- Père et Fils, de Alexander Sokurov - Eu juro que eu venho tentando, dentro da minha subjetividade impossível de escapar, ser o mais objetivo também nestes posts sobre os filmes, dando uma idéia da recepção, qualidades, defeitos, etc. Mas aqui não será possível, desculpem: é oficial, Sokurov faz a mais morta das artes cinematográficas atuais (se bem que Greenaway vem aí no sábado...). Este filme novo é só auto-indulgência e repetição sem justificativa. A mesma estilização da imagem sem nenhuma da poesia dos seus filmes iniciais (e até Mãe e Filho, por que não?), a mesma sensação de esforço em encontrar o sublime a cada plano, doa a quem doer (e dói na gente), a trilha insuportável... "Arte" no pior sentido da palavra.
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (11)
Em termos de Palma de Ouro (falo mais disso no sábado após todos os filmes), já tendo sido exibidos 15 dos 20 filmes da Competição, de fato só três parecem ter chances: se fosse por cinema em si era de Dogville fácil. Já Les Invasions Barbaires de Denys Arcand (trato dele amanhã) leva pelo lado "humano", se o júri assim quiser (um prêmio à la O Quarto do Filho, digamos, ainda que o filme de Moretti seja muito melhor), e se optar por ousadia (embora Patrice Chereau como presidente de júri não chegue a fazer imaginar isso), correria por fora o turco Uzak. Todos os outros até agora seriam surpresas. Mas a impressão que se tem por aqui é que se torce para que Sokurov, Eastwood ou Greenaway possam tirar o prêmio de um destes. Pra não repremiar Von Trier, não dar uma Palma francamente fraca nem premiar um turco desconhecido.
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (10)
Estando em Cannes como membro da imprensa por gentileza acima de tudo do Estado de S. Paulo, começo hoje a pagar minha dívida com eles, com a matéria que saiu no Caderno 2 sobre o filme de João César Monteiro. Tinha prometido falar mais sobre o filme, e lá está.
(Eduardo Valente)

20.5.03

Valente em Cannes (9)
Outros filmes
- Le Monde Vivant, de Eugene Green - Uma deliciosa "brincadeira séria" de linguagem exibida na Quinzena dos Realizadores. Trata-se da encenação de uma lenda medieval com cavaleiros com leões enfrentando ogres, só que feita sem nenhuma reconstituição ou efeitos. Ou seja: os cavaleiros são apenas jovens de calças jeans e camisas de manga, o leão é um labrador, etc. Parece uma sátira, mas aí está o segredo: o filme leva muito a sério a sua história, e a conta com uma encenação que lembra a de um Straub. Só que inclui nos diálogos muita ironia, sempre. Com isso, há uma mistura inesperada de real magia, e de muita inteligência no trabalho que ri de si mesmo, sem no entanto fazer chacota da possibilidade de contar uma história com o mínimo de recursos. Um trabalho dos mais fascinantes.
- Bright Future (Akurai Mirai), de Kyoshi Kurosawa - Filme de cativante potencial poético no trato de um tema bastante comum: a juventude sem projetos e o conflito de gerações entre ela e seus pais. Kurosawa cria algumas imagens de força ímpar, usando medusas (sim, os animais marinhos) como metáfora do desejo de mudar o mundo (um pouco na linha do uso da enguia por Imamura). Em competição, é difícil o filme sair com algum prêmio, pela sua forma bem pouco convencional e muito menos ainda condescendente com o espectador, mas mostra a força de um cinema japonês jovem do qual se exibirá mais um exemplar em competição até o fim da semana.
- Le Temps de Loups, de Michael Haneke - Exibido na Seleção Oficial, mas fora de competição porque tem como ator o presidente do júri deste ano, Patrice Chereau. O filme de Haneke foi o mais vaiado até agora na sessão de imprensa (embora tenha havido palmas), onde só se tinha ouvido eventuais apupos individuais até agora (mas os amigos com mais experiência em Cannes asseguram que todo ano acontece isso com Haneke). Claro que Haneke continua trabalhando com sua "estética do refém", onde o espectador é quase um joguete numa relação sadomasoquista com o filme, mas não se pode negar que, até pelo grande número de personagens em cena, ele está bem mais "matizado". Mas, mais do que tudo, o filme sofre na segunda metade de um problema grave de não saber exatamente para onde ir, e começa a dar voltas em torno do rabo. A idéia inicial de um mundo pós-catástrofe, onde nunca sabemos qual catástrofe exatamente, nem vemos nenhum efeito direto dela (pois acompanhamos apenas pessoas se refugiando no interior do país), é boa e muito bem trabalhada visualmente. Mas, quando se forma uma tal comunidade com relações internas que Haneke claramente quer usar como metáfora da sociedade contemporânea, ele cai assustadoramente de efeito. Não era caso pra tantas vaias (afinal, pode-se dizer inclusive que o final do filme tem ironia, mas ao mesmo tempo é quase otimista e "humano", o que vindo de Haneke é novidade), mas talvez por isso mesmo seja o trabalho menos interessante de Haneke em algum tempo.
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (8)
O Affair Dogville
Para se entender o que representou Dogville em Cannes, basta usar como exemplo o caos que se instaurou na entrada da sala de conferência de imprensa (onde, geralmente se entra com tranquilidade). Realizada logo após a exibição do filme, o que se viu foi quase uma praça de guerra com mais de 500 jornalistas brigando para entrar num local onde só cabem 150. Isso simplesmente porque se sabia que, o que quer que Lars Von Trier e Nicole Kidman fossem dizer, era o momento mais importante do Festival. E a entrevista foi ótima, com Von Trier mostrando-se mais uma vez um gênio do marketing, levando os jornalistas americanos (que eram maioria e estavam majoritariamente irritadíssimos) na flauta, com respostas do tipo "Eu adoraria ser americano", "Eu queria que houvesse uma campanha Free America, como houve agora a Free Iraq", "Eu nunca fui aos EUA, até adoraria ir, mas não acho que seja um bom momento para isso", "O filme não é um retrato da América, e sim de mim como um espelho da América", "se a América acha que pode falar sobre todos, porque nós não poderíamos falar da América?", "Eu nunca estive lá, mas não creio que os realizadores de Casablanca tenham estado lá também", etc. Hoje, quando saíram as primeiras reações na mídia, se viu o esperado: uma crítica irada da Variety e o filme sendo considerado o melhor até agora pelo quadro de cotações da Screen International (com críticos do mundo todo - mininota de rodapé: dos dez filmes exibidos até agora, Carandiru está em último nesse mesmo quadro). Com isso reforça-se a impressão inicial: o filme é tão contundente que pode perder a Palma por ter incomodado demais alguém, em especial a porção americana do júri, que pode ser obrigado a contemporizar. Por que tanta polêmica, afinal? Falamos disso em breve...
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (7)
É uma pena, mas no mesmo dia em que o Festival de Cannes começou de verdade, ele também terminou. Explico: Dogville, de Lars Von Trier, é muito mais do que se esperava dele. É um filme para se discutir por muitos anos, e que entre outras coisas torna imediatamente desatualizada a própria pauta da Contracampo sobre as imagens da América (especialmente por estrangeiros). É filme maior, do qual falaremos bem mais amanhã. Só que com ele veio a sensação de que tudo daqui por diante será anti-clímax. Von Trier só não leva a Palma de Ouro em 3 situações: 1) um dos próximos filmes seja a vinda do messias em forma de cinema. 2) o júri prefira não premiar o mesmo cineasta 3 Cannes depois. 3) a força e a contundência do filme encontre alguma resistência veemente em algum membro do júri (trata-se do tipo de filme que pode causar isso). Mas no que importa, que é menos os prêmios e mais os filmes, a certeza é: Cannes 2003 já valeu a pena. Ah, e minha profecia ao ver a programação divulgada se confirmou: o que antes era CarandiRÚ, com sotaque francês, virou Carandi-WHO?, em inglês mesmo, depois que a presença no mesmo dia de Von Trier apagou completamente Babenco dos registros oficiais.
(Eduardo Valente)

19.5.03

A Continental lançará em setembro, em DVD, a filmografia completa de Andrei Tarkovski (1932-1986). Além dos oito longas-metragens, lançará também quatro discos com extras, compostos de entrevistas do diretor e de profissionais com os quais trabalhou. A mesma distribuidora, constantemente acusada de lançar filmes sem pagar direitos, em cópias de qualidade às vezes questionável, havia lançado, no pacote de Cinema Soviétivo, um título de Tarkovski: Andrei Rublev. Nem é preciso observar que, em tela pequena, mesmo nos televisores maiores, os filmes perdem um bocado. Até mesmo em cópias decentes. A obra do cineasta russo exige concentração total, de modo a se abrir para o ritual de suas imagens.
(Cléber Eduardo)

18.5.03

Valente em Cannes (6)
- Sansa, de Siegfried - Mesmo realizador de Louise, Take 2, este seu filme exibido aqui na Quinzena dos Realizadores leva adiante tudo que o filme já trazia, para o bem e para o mal. A mesma liberdade de câmera, o mesmo senso libertário do trabalho com personagens marginais vagando pelo mundo (aqui, no caso, literalmente, porque o personagem passa por 14 países durante sua peregrinação), e acima de tudo, o mesmo desejo de tornar o cinema o espelho de uma utopia de vida sem autoridades e com muito amor (e sexo). O problema é que o filme perde sua força pela duração excessiva e também o seu foco, especialmente nas cenas do terceiro mundo (que lembram um pouco demais um trabalho do tipo de Sebastião Salgado). Mas o que fica mesmo é um delicioso exercício que lembra em muitos momentos o trabalho de alguns exemplos do nosso Cinema Marginal (em especial o de Andrea Tonacci).
- Swimming Pool, de François Ozon - Ozon se dedica a mais uma brincadeira com os gêneros cinematográficos, sendo que aqui há uma dupla brincadeira, pois inicialmente ele parece trabalhar num registro que logo descobrimos falso (num jogo de espelhos que inclusive aparece formalmente no filme). Mas, se o filme tem inegável elegância e conhecimento de causa no quesito de construção, ele se revela de pouca permanência uma vez que o jogo fique às claras e terminado. Trabalhando por demais com alguns estereótipos (como o da inglesa travada ou o da jovem loira maluquinha que a liberta), mesmo que conscientemente, Ozon acaba ficando um pouco óbvio demais, ainda que sedutor. Especialmente para a platéia masculina, para quem pela segunda vez (a primeira foi em Gotas D'Água...) ele apresenta Ludivine Sagnier como veio ao mundo. E ela veio ao mundo bem demais...
- Arimpara, de Murali Nair - Exibido na Un Certain Regard, o filme trabalha a conflituosa relação entre tradição e modernidade na sociedade indiana a partir de uma curiosa história - que permite momentos de autêntico filme trash a partir de uma verruga que não pára de crescer no rosto de um homem. Uma das maiores qualidades do filme está justamente em não ter medo de levar sua história até o final, sem qualquer temor de parecer ridícula. Só que a mistura de realismo quase naturalista na encenação de boa parte do filme e o crescendo em direção a um simbolismo de leitura por demais simplória acaba tornando o filme um pouco mais difícil de "descer" do que gostaria. Sobressaem um exotismo por demais evidente e uma estranheza como valor em si, quando deveriam ser parte do todo.
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (5)
Pintou o primeiro filme realmente importante da competição do Festival de Cannes. Embora já tivéssemos visto dois muito bons filmes menores de cineastas importantes (Techiné e Ruiz) e dois filmes interessantes e até importantes (o turco Uzak, principalmente, mas também o novo filme de Samira Makhmalbaf, sendo que neste caso confio na opinião dos críticos amigos), faltava o filme que nos fizesse parar pra discutir o que de fato ele é, qual sua real importância, o quanto ele vem a somar no cinema mundial atual - e é desses filmes e não dos médios que se faz a memória de um evento como Cannes. Pois bem, este filme, por enquanto, é Elephant, de Gus Van Sant. Nele, o diretor encena o que seria um dia comum numa high school americana, filmada como nunca se filmou no cinema jovem americano. Em Elephant, além desta filmagem de uma beleza e poesia incomuns, trata-se de uma encenação ficcional (tanto que a escola não tem o mesmo nome) do dia do massacre de Columbine. Quando isso fica claro no final do filme, somos surpreendidos por uma encenação absolutamente chocante justamente por mantar sua desespetacularização constante. Um filme que deixa marcas profundas, ainda que (e em grande parte por isso mesmo) não busque respostas ao que mostra. Acima de tudo, um filme inesquecível, a ser revisto e rediscutido (já que a correria de Cannes impede um olhar mais completo).
(Eduardo Valente)

17.5.03

Valente em Cannes (4)
Mais Filmes
- Kitchen Stories, de Bent Hamer - primeiro filme visto na Quinzena dos Realizadores (onde perdi o filme de abertura, de João Botelho, porque a sala estava lotada quando consegui chegar), trata-se de uma comédia com um humor bastante norueguês (seja lá o que isso signifique). Hamer fez pelo menos um filme bem interessante que passou na Mostra Rio (Ovos), e este aqui começa muito bem, mas vai se tornando mais e mais esquemático até o final. No fim de um dia de trabalho, um convite ao cansaço.
- Les Égarés, de André Techiné - Techiné consegue voltar ao tema da Segunda Guerra e fazer um filme que soa novo. O início é especialmente belo, com uma cena de bombardeio de arrepiar (pela simplicidade) e com a passagem do drama geral da população francesa para o microcosmo de uma família. O filme é um estudo de personagens e relações extremamente delicado, e além de tudo ainda tem Emmanuelle Beárt, o que não é pouca coisa.
- Vai e Vem, de João César Monteiro - o filme de despedida do cineasta português, falecido no início do ano, é tudo que se poderia esperar de um testamento de um artista tão radical e vital quanto Monteiro era (e é, pelos seus filmes). Para se falar dele de fato, há que se escrever muito mais do que isso, o que prometo fazer em breve. Tomara que seja levado aos festivais do Brasil.
- Uzak (Lontain), de Nuri Bilge Ceylan - o filme turco da competição, de um cineasta desconhecido por quase todos, é o melhor dentre os exibidos até agora (o que não é pouco, tendo visto Techiné e Ruiz em boa forma, ainda que em filmes menores). Uma radicalíssima descrição da desilusão do homem moderno com o mundo, a partir da rotina extremamente simples e ao mesmo tempo duríssima de dois primos. Sem forçar tons, deixando que cada imagem, cada som, cada corte tenha sua força, o filme causou leve debandada na sessão de público (nada de incomum, aliás), mas os que ficaram aplaudiram longamente o cineasta. Um belíssimo exercício de rigor cinematográfico.
- American Splendor, de Shari Springer Berman e Roberto Pulcini - vencedor do júri de Sundance, passou aqui na Un Certain Regard. O filme começa muito bem com uma mescla de documentário, ficção e efeitos visuais tentando retomar a origem do filme, que é adaptação de uma tira de quadrinhos americana baseada na vida absolutamente comum de seu criador (que, para localizar, basta dizer que é amigo de Robert Crumb). Infelizmente, o filme perde muito o gás depois que seus truques de linguagem começam a se repetir, e embora Pual Giamatti tenha um desempenho excepcional como o protagonista, o filme se ressente de mais documentário e menos ficção, porque esta começa a se tornar mais e mais esquemática, e francamente diminuidora da história que se tinha em mãos.
- Young Adam, de David Mackenzie - Filme de estreante, na Un Certain Regard. Um início arrebatador, com meia hora de uma filmagem (e sons) altamente sedutores no conto do envolvimento de um homem com a mulher de seu patrão (sendo que eles trabalham e vivem numa balsa que roda pelos rios da Escócia). Infelizmente, o filme vai ficando mais e mais apaixonado pela sua linguagem (e pela trilha de David Byrne, no início bela, depois cansativa), e pelos truques de roteiro que começa a alinhavar, e acaba deixando de lado tudo que nos havia interessado no início. Pena.
(Eduardo Valente)


Valente em Cannes (3)
Festival Fatigue
Me lembro de que, quando eu apenas tinha vontade de vir ao Festival um dia, eu achava uma frescura e uma certa tiração de onda quando o amigo crítico recifense Kléber Mendonça Filho descrevia a tal doença-título do post. Ele dizia que era impossível acompanhar de fato os filmes, comer decentemente e dormir, e que, com isso, o crítico terminava muito mais um zumbi do que um espectador privilegiado. É impressionante constatar a total verdade da versão dele. Após três dias de Festival, qualquer pessoa com o idealismo de cobrir a sério um evento como este já está completamente esgotada. Acorda-se às 7 e meia da manhã pra se ver a primeira sessão de imprensa às 8h30 (sempre do filme mais importante da competição), e vê-se filmes correndo de uma sala para a outra (enfrentando filas sempre, e nem sempre sentando-se nos melhores lugares) até a meia-noite. Comer é quase um sonho, e quando realizado após a última sessão significa menos horas de sono precioso. E os amigos da cobertura diária ainda precisam mandar várias linhas coerentes pros seus jornais colocando em dia as notícias (na maior parte das vezes em detrimento de ver filmes importantes). Comprovo: é coisa de maluco. Os jornalistas são, disparados, os mais estressados e cansados no Festival desde o segundo dia. E, um segredo de estado - a grande maioria dorme em pelo menos um filme por dia, e escreve sobre eles muitas vezes (por obrigação, diga-se) a partir do pouco que tenha visto e do comentário dos amigos. Eu confesso: na Competição Oficial dormi no filme de Samira Makhmalbaf, este não por culpa dela (não vi o suficiente pra saber se é bom), e no de Pupi Avati (este de propósito, porque o filme é ruim demais). Ah, e comemorei hoje a primeira saída com meia hora de filme: Qui A Tué Bambi?, um suspense francês risível que passava fora de competição.
(Eduardo Valente)

16.5.03

O fracasso mundial de Pinocchio, acompanhado de uma tempestade de críticas pesadas, enterrou sua estréia no Brasil. A distribuidora Buena Vista desistiu do lançamento, certa de que, se gastasse em cópias e divulgação para exibi-lo no cinema, não recuperaria o investimento. O filme sairá diretamente em vídeo e DVD provavelmente esse ano. Um sinal de que o êxito de A Vida é Bela, como muitos supunham, foi um acidente para Roberto Benigni.
(Cléber Eduardo)

15.5.03

Valente em Cannes (2)
Os primeiros três filmes...
- Ce jour-lá, de Raoul Ruiz - O menino Ruiz está cada dia mais sapeca. Depois do delicioso Combate de Amor Sonhado, exibido na Mostra de SP do ano passado, ele comparece com uma ainda mais deliciosa e saborosa brincadeira com a noção de loucura e com a ganância. Feito com enorme graça (e absolutamente "narrativo", no que se refere a Ruiz), grande dose de poesia e muita, muita ironia, tem desde já algumas das cenas antológicas do Festival (a melhor delas uma dança ao som de músicas de celulares) e uma interpretação etérea e linda de Elsa Zylberstein.
- En Jouant "Dans la compagnie des hommes", de Arnaud Desplechin - Desplechin andava frequentando a Competição, então talvez a inclusão deste filme na Un Certain Regard seja um tipo de "rebaixamento branco". Mas ele e o elenco pareciam bem felizes ao apresentar o filme, embora avisasse tratar-se de cópia de trabalho (de fato, nos créditos aparecia "rough draft"). Não deixa de ser uma certa jogada, porque é difícil julgar um trabalho em andamento, mas, se ele apresenta, por que eu não julgaria? O filme tem pontos de partida muito interessantes (tanto o texto da peça "Na Companhia de Homens", que se dispõe a adaptar como indica o título, como esta encenação de um processo de encenação), mas talvez sofra justamente deste excesso de opções. Algumas delas acabam bem soltas (como a incorporação de trechos de Hamlet ao filme), e o filme torna-se bastante cansativo, apesar de atuações excepcionais do protagonista Sami Bouajila e outros do elenco masculino (as mulheres parecem perdidas no filme, o que talvez tenha a ver com o fato de que no texto original não havia nenhuma delas - algo dito no próprio filme). Não se sabe quão "rough" o filme esteja e o quanto se vá mexer nele, mas dá para imaginá-lo bem melhor resolvido.
- La Cruz del Sur, de Pablo Reyero - representante argentino na Un Certain Regard, trata-se de um filme de estréia. O diretor demonstra efetivo domínio narrativo e fluência, mas peca na composição de seus personagens. Assim, uma história que por si tem pouco de novo (personagens marginais numa fuga após roubarem as drogas de um traficante), e que poderia crescer justamente no trabalho dos personagens, acaba patinando bastante na obviedade, apesar da encenação cheia de energia. O final é especialmente interessante, mas não resolve os problemas que o filme traz.
(Eduardo Valente)

Valente em Cannes (1)
O mais difícil em Cannes é fazer a sua programação de cada dia. Afinal, além de haver muito mais filmes em exibição do que tempo para vê-los (e se somarmos as exibições no mercado podemos dizer que há MUITO mais filmes do que tempo), na grande maioria não há ainda qualquer critério para se diferenciar um filme imperdível de uma bobagem, já que quase ninguém viu os filmes ainda. E, como dizem vários dos colegas críticos aqui presentes, sempre virá alguém no último dia dizer que você perdeu "o grande filme do Festival", que era aquela desconhecida estréia na Semana da Crítica... Mas futebol tem dessas coisas...
(antes que alguém pergunte, fiz questão de não ver Matrix e Fanfan la Tulipe)
(Eduardo Valente)

13.5.03

Não custa lembrar. O drama romântico Um Homem, Uma Mulher (1966),de Claude Lelouch, que acaba de sair em DVD, homenageia a bossa-nova e o Cinema Novo. Em uma das cenas, o marido de Anouk Aimée, em um flash-back, canta em francês "Samba da Benção", de Vinicius de Moraes e Baden Powell, e presta tributo a deuses da MPB. Ele cita vários nomes, de Noel Rosa a Edu Lobo. Vinicius ameaçou processar o diretor por não ter pago direitos autorais nem dar crédito aos compositores na ficha técnica. Diante da pressão, sem pegar um franco sequer, Lelouch deu o crédito. Em um outro momento, o da homenagem ao Cinema Novo, se assim pudermos considerar, Jean-Louis Trintignant passeia de carro com seu filho e dá voltas circulares na praia, a exemplo de Os Cafajestes, de Ruy Guerra. Como é assumido o fascínio do diretor pelo Brasil, expresso em entrevistas e em uma seqüência desse filme, há poucas dúvidas se é citação ou mero acaso. Curiosidades à parte, o filme tem vivacidade. É obra de paixão pelo cinema de seu diretor e das desafiadoras circunstâncias de produção. Lelouch vinha de um tremendo fiasco comercial, Les Grands Moments, e precisava de um sucesso para pagar suas dívidas. Um Homem, Uma Mulher tinha de preencher os cheques para tirá-lo do vermelho. Ele escreveu o roteiro em um mês e meio, filmou em três semanas e montou em outras três. Um produtor acrescentou uma quantia para se filmar em cores, mas o dinheiro não era suficiente para tanto e apenas algumas cenas ficaram coloridas. Isso explica a falta de critério da passagem de um registro para outro. Sempre com a câmera no ombro e aberto a improvisos na filmagem, Lelouch segue a lógica do "quanto mais planos melhor". Filma as mesmas cenas de ângulos diferentes apenas para se satisfazer com a manipulação da imagem. O diretor economiza nas palavras e abusa da música de Francis Lai, a principal marca registrada da obra ao lado da câmera rodopiante em torno do casal. Ao contar o encontro, o envolvimento, a separação e o reencontro de um par de viúvos, que ainda sentem as dores de perdas recentes, mas se abrem um ao outro para renovar seus afetos, Lelouch visa criar encanto. É um filme de climas, embora, fruto dos excessos do cineasta, climas demais.
(Cléber Eduardo)

9.5.03

Na Trópico, sem falta, dossiê intitulado "Novos Rumos para o Audiovisual", coordenado por Esther Hamburguer. O eixo TV-publicidade-cinema - em textos de Alfredo Manevy, Flavio Botelho e Newton Cannito. Leitura imprescindível - no entanto, está disponível somente para assinantes do provedor.
(Fernando Veríssimo)

7.5.03

Algumas definições possíveis de contrapartida (1)
O menino pergunta ao pai:
- Papai, mas afinal o que é contrapartida?
E o sábio papaizinho:
- Meu filho, sabe quando o papai viaja e passa um tempo fora, e a mamãe recebe muitos amiguinhos em casa, ou dorme fora de casa outras vezes? Então...
- Mas, papai, isso só mostra que você é um corno.
- Pois é, meu filho, mas, EM CONTRAPARTIDA, você é um baita dum filho da puta.
*************************************
Algumas definições possíveis de contrapartida (2)
O que é inegável é que a maior relação de "contrapartida social" que o cinema nacional já teve foi na Boca do Lixo, onde o espectador deixava sua contrapartida no próprio cinema.
E, ainda na saída, podia perguntar para a colega trabalhadora:
- Quanto é o programa?
- 50 cruzeiros.
- E o que eu ganho, em contrapartida?
A Boca do Lixo sim exercia o Fome Zero. Porque, como lembra o poeta, "a gente não quer só comida..."
*************************************
Algumas definições possíveis de contrapartida (3)
O fato é que piada e sacanagem não foi o que eu acabei de relatar aqui, e sim os usos de parte a parte que se quer fazer de noções como "jdanovismo" e "contrapartida social". Alguém tem um nariz vermelho aí pra emprestar?
(Eduardo Valente)

4.5.03

É engraçado que a discussão criada por quatro ou cinco figuras de destaque seja retratada por veículos de imprensa como "forte indignação dentro da classe cinematográfica"... De toda maneira, acho que têm toda a razão os doutores Diegues, Barreto e Babenco - que já se manifestaram contra possíveis critérios de apoio dirigistas de algumas empresas estatais que tradicionalmente investem em seus filmes. Já até escrevi aqui pela Contracampo algumas vezes que não cabe a instâncias governamentais estabelecer critérios estéticos ou temáticos - e isso vale para instâncias nacionais, estaduais e municipais.
No entanto, tem toda a razão também a SeCom ao notar que isso não significa, de maneira nenhuma, que o Estado não tenha o direito de pedir uma contrapartida ao investimento que representam os reais que são abatido dos impostos da empresas co-patrocinadoras. A contrapartida é a obra, como afirma com razão Diegues? Então os filmes precisam ser vistos, e não só na zona sul carioca ou nos cinemas da Paulista, e isso não é um problema dos exibidores, ou pelo menos não apenas deles. Mesmo que se construam salas país afora (como pretende fazer a Petrobras), ainda assim é preciso notar que nos dias de hoje há um imenso público a ser conquistado através da televisão. Então os filmes precisam passar na televisão!...
Bem, eu devo estar me repetindo, na edição passada já defendi essa idéia no Cinema Falado e num artigo, mas volto a bater na mesma tecla: uma justa contrapartida a se pedir de filmes que fossem produzidos majoritariamente através de incentivos fiscais ou apoio estatal seria a de, após um período determinado para distribuição comercial, terem seus direitos de exibição cedidos para as redes públicas de televisão. Estas redes públicas poderiam então exibir o cinema brasileiro recente para o público que já o pagou através dos incentivos fiscais. Afinal, "a contrapartida é a obra", com certeza! Então, mesmo que não deva de fato ter ingerência sobre a produção desta, certamente merece algum direito sobre a sua exibição o Estado patrocinador, não é mesmo?
Considerando que os realizadores de filme de grande sucesso podem querer manter os direitos de exibição na tevê, pode-se pensar em outras alternativas. Uma contrapartida possível para filmes de grande bilheteria seria a de o Estado recuperar o dinheiro investido através dos descontos de impostos por meio do percentual de bilheteira que lhe cabe como co-produtor - possibilitando inclusive o apoio a novos filmes, dessa forma. Para ficar num exemplo óbvio: se o doutor Babenco prefere guardar o seu Carandiru para exibir numa emissora privada (como talvez a da co-produtora), basta que devolva aos cofres públicos o dinheiro abatido de impostos que foi usado na produção do seu filme. Ainda que metade do orçamento de Carandiru tenha sido de investimento sem incentivos, a outra metade já daria uma grana razoável para o Ministro Gil, o doutor Orlando, a Ancine ou seja quem for reinvestir em filmes baratos, que tal? Certamente é uma opção melhor que criar critérios estéticos ou temáticos.
(Daniel Caetano)

2.5.03

Pintou concorrência na área: a Revista Cinemática aparece dedicando seu primeiro número à discussão acerca do Apartheid social brasileiro, com artigos de BNegão e do professor Júlio César Tavares, entre outros.
Um problema: algumas matérias não estão assinadas. Bem, talvez seja opção editorial. Há pelo menos uma matéria realmente bizarra - uma entrevista (curta) com o coronel que ordenou a invasão policial do Carandiru retratada no filme recente do Babenco.
A revista faz parte de um projeto mais amplo do grupo FICs (Fábrica de Idéias Cinemáticas), com apoio da Educine - já tornado público pela iniciativa de promover um workshop e concurso de roteiros para o programa da Globo Cidade dos Homens, em parceria com a emissora. Na equipe que está capitaneando a iniciativa temos, entre outros, Newton Cannito (também editor da Revista Sinopse e professor da Educine).
Fica o aviso - vale uma leitura atenta.
(Daniel Caetano)